A pequena Pierrevillers, no nordeste da
França, estava em festa. Anne Gusse e Patrick Battiston iriam se casar. Mas
nada de limusines, bufês extravagantes, DJs famosos e decorações faraônicas. Ao
contrário do Brasil, os casamentos franceses tendem a ser mais simples e íntimos.
A começar pelos noivos, que foram a pé até a casa da família Gusse, onde
aconteceu a recepção dos convidados — pouco mais de cem. Tudo muito bem
organizado e, como não poderia deixar de ser, chique.
Depois do brunch vieram os votos. Os pais falaram, emocionados e, então, a
palavra passou para os amigos do casal. Um deles, em especial, chamou a atenção
apenas por estar presente. Nove dias antes do casamento, o tal amigo havia agredido
o noivo e o deixado desacordado. Seu nome era Harald Schumacher.
O casal Anne Gusse e Patrick Battiston recém-casados. |
Battiston e Schumacher se conheceram em
Sevilha, durante a semifinal da Copa do Mundo de 1982. A partida entre França e
Alemanha Ocidental estava 1 a 1 — Littbarski para os germânicos e Platini,
padrinho de Battiston, para os franceses —, quando, aos 5min do segundo tempo,
o meia Genghini se contundiu e promoveu a entrada do defensor Battiston, para
atuar mais avançado. A permanência do jogador em campo não durou dez minutos.
Platini achou uma brecha na defesa alemã e
lançou para Battiston. O francês invadiu a área e, na hora do arremate, foi
atropelado pelo goleiro Schumacher. O alemão acertou uma joelhada no rosto do
francês, que imediatamente caiu inconsciente no gramado. Os jogadores franceses
nem ligaram para a não marcação do pênalti; Battiston, imóvel no chão, estava
pálido. Platini não sentiu seu pulso e o frio da tragédia percorreu sua
espinha.
Schumacher, que sequer foi advertido pela
agressão, manteve-se afastado da cena, por precaução. “Os franceses estavam
enfurecidos ao redor dele, e fiquei com medo da situação se agravar”, explicou
o goleiro. Battiston saiu de maca direto para a ambulância. E o jogo,
inacreditavelmente, seguiu como se nada tivesse acontecido, com tiro de meta
para a Alemanha Ocidental.
"... As coisas teriam sido ainda pior para ele se o contato tivesse sido frontal. Eu poderia ter me virado no último momento e lhe batido na cabeça com o meu quadril. Mas não o fiz." |
No hospital, os resultados dos exames apontaram
uma concussão cerebral, duas vértebras quebradas e dois dentes a menos.
Enquanto isso, no campo, o resultado de 1 a 1 levava a partida para a
prorrogação. E que prorrogação. Em 9 minutos, a França abriu uma vantagem de
dois gols, com Trésor e Giresse. Mas os alemães não se entregaram: Rummenigge e
Fischer igualaram o marcador em inacreditáveis 3 a 3. Fim de prorrogação. Implantada
na Copa de 74, a decisão por pênaltis, enfim, estreava em Copas.
Nas penalidades, Schumacher foi de vilão a
herói. O goleiro não saiu nem na foto nas três primeiras batidas francesas, mas
depois pegou as cobranças de Six e Bossis e garantiu a seleção alemã em mais
uma final. Ainda em campo, um repórter francês informou a Schumacher que a
gravidade do incidente com Battiston se resumia à perda de dois dentes. O goleiro se disse
aliviado e se comprometeu a pagar o tratamento odontológico ao jogador. A atitude,
no entanto, não foi capaz de transformar o “Monstro de Sevilla” — como os
franceses passaram a chamá-lo — em “Fada dos Dentes”.
O goleiro alemão Harald Schumacher defende o pênalti de Maxime Bossis na série alternada de pênaltis. |
A final da Copa do Mundo de 1982 reuniu dois bicampeões mundiais: a Alemanha Ocidental (1954 e 74) e a Itália
(1934 e 38), que havia eliminado a Polônia nas semifinais (2 a 0), aproveitando
a excelente fase de Paolo Rossi — autor dos dois gols. A única certeza antes da partida no Estádio Santiago Bernabéu, em Madrid, era que o Brasil teria companhia
no seleto grupo de tricampeões.
Com a arbitragem brasileira de Arnaldo Cezar
Coelho — o primeiro juiz não europeu em uma final de Mundial —, o jogo começou duro e truncado, mostrando aos mais desavisados que se tratava mesmo de uma
partida entre seleções da Europa. A sorte parecia estar do lado de Schumacher,
quando Cabrini cobrou para fora o pênalti sofrido por Conti, aos 25min. Porém,
na segunda etapa, a Itália passeou em campo e não deu a menor chance para os
alemães.
Aos 12min, os italianos bateram rapidamente
uma falta na intermediária e, no cruzamento de Gentile, Paolo Rossi escorou de
cabeça para o fundo do gol de Schumacher. Era o sexto gol do “Bambino d’Oro”,
que ultrapassava o alemão Rummenigge e assumia a artilharia isolada do torneio
— deixando boquiaberta a imprensa italiana.
A Azzurra continuou envolvendo o time
germânico, chegando a lembrar por alto o "futebol-arte" do Brasil, de toques
rápidos e esnobes. Numa das boas tramas italianas no ataque, aos 44min,
Tardelli acertou um chute indefensável que deixou Schumacher estático: 2 a 0. E
quando Altobelli recebeu a bola na marca do pênalti e marcou o terceiro com tranquilidade,
a nove minutos do fim, outra certeza se fez presente: depois de 44 anos, a
Itália era tri.
Aos 38min, Breitner fez o gol que a honra
alemã esperava — o terceiro jogador a marcar em duas finais de Copas, ao lado
dos brasileiros Pelé e Vavá. Mas não havia nada de nobre em perder mais uma vez
para a Itália: o quarto confronto em Copas entre elas sem vitória da Alemanha
Ocidental.
A comemoração de Tardelli foi, provavelmente, uma das mais eufóricas em finais de Copa. |
Enquanto o capitão Zoff, no auge de seus 40
anos, levantava o troféu como o mais velho campeão mundial, o outro goleiro da
decisão, o alemão Schumacher, observava de longe o que poderia ter sido a sua
glória. Entretanto, o fantasma da voadora em Battiston ainda o
atormentava.
Decidido a limpar a sua barra, Schumacher
viajou até Metz, na França, para se encontrar com Battiston, que já estava recuperado. Sob
os olhares de dezenas de jornalistas, o goleiro, arrependido, admitiu seu erro
e foi perdoado pelo colega de profissão. O aperto de mão selou uma amizade
nascida na raiva e na violência. No dia seguinte, Schumacher viajou para a
pequena Pierrevillers como convidado de honra do noivo.
Honra que só existe nos homens que assumem
seus erros.
Harald Schumacher e Patrick Battiston selaram a paz um dia antes do francês se casar. E foram felizes para sempre. |
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