quinta-feira, 8 de maio de 2014

1982 | A Aposta do Técnico

Para ler o texto anterior, "Voa, Canarinho", clique aqui.



“É verdade que tenho inúmeros amigos na política, mas eles não
seriam tão cordiais, se meu negócio fosse narcóticos em vez de jogo.
Eles pensam que o jogo é algo como a bebida, um vício inofensivo,
e acham que o narcótico é um negócio sujo. Não, não proteste.
Estou-lhe dizendo a opinião deles, não a minha.
Como um homem ganha a vida é assunto que não me interessa.” 
(Don Corleone, O Poderoso Chefão, 20ª edição, p. 72)


Herança siciliana do século IX, as máfias resistiram ao tempo e à lei e, ainda hoje, fazem parte do cotidiano dos italianos. Tanto na ficção como na vida real, a justiça — ou a falta dela — confirma um país corrompido por organizações criminosas, do menor ao mais alto escalão da sociedade. Um mal que se alastrou pela política, pela economia e chegou ao mais atraente dos impérios: o futebol.

Em 1980, o escândalo conhecido como ‘Totonero’ envergonhou a nação, que acompanhou ao vivo pela RAI, a TV estatal italiana, a prisão de 13 dos 27 jogadores envolvidos num esquema de manipulação de resultados do Totocalcio — a loteria esportiva do país. Entre os réus estava Paolo Rossi.


Rossi negou sua participação nas armações e foi inocentado na justiça comum. Milan e Lazio foram rebaixados para a Serie B e Avellino, Bologna, Perugia, Palermo e Taranto começaram os campeonatos do ano seguinte com cinco pontos a menos.

O atacante do Perugia era um dos jogadores que apostava dinheiro no resultado de partidas nas quais eles mesmos participavam. Acusado de apostar contra sua própria equipe em jogo pela Serie A de 1980, Rossi foi suspenso por três anos pela justiça desportiva. Graças ao apelo popular, a pena caiu para dois anos, permitindo que tivesse a oportunidade de participar de outra Copa do Mundo — esteve em 1978, na Argentina.

Depois de cumprir suspensão, ele voltou a tempo de disputar três partidas pela Juventus, sua nova equipe, na Serie A 1981-82 — não marcou gols. Convocado no lugar de Bettega (machucado) e de Pruzzo (artilheiro dos dois últimos Campeonatos Italianos), Paolo Rossi virou a grande aposta — lícita — do técnico Enzo Bearzot. Acabava ali a paz da Azzurra.

Criticado por chamar o atacante que, além do escândalo, não estava em grande fase, o treinador entrou em choque com a imprensa italiana antes mesmo do início do Mundial. Os jogadores foram proibidos de dar entrevistas e de ler os jornais — diante do que a mídia publicava contra a esquadra, foi a melhor decisão.


No banco dos réus: Enrico Albertosi (Milan), Massimo Cacciatori e Lionello Manfredonia (Lazio), Paolo Rossi e Luciano Zecchini (Perugia).

A Copa do Mundo de 1982 foi a edição com o maior número de placares em branco. Dos sete 0 x 0, três aconteceram no Grupo 1. Ainda houve mais dois empates por 1 a 1 na chave, o que explica o segundo colocado ter se classificado sem vencer sequer uma partida. Essa seleção foi a Itália.

Os empates por 0 a 0 contra a Polônia e por 1 a 1 contra o Peru e Camarões aumentaram as tensões entre a mídia e a Azzurra. A Itália só superou a seleção camaronesa, estreante em Copas, no número de gols marcados: dois em três jogos. O prestígio da seleção, que já não era dos mais altos, ruiu de vez.


Em sua primeira aparição em Copas, Camarões saiu invicto. O estreante empatou os três jogos da primeira fase e, com apenas um gol a favor, perdeu nos critérios de desempate para a Itália, que ficou com a segunda vaga.

Em uma cena patética, alguns jornalistas chegaram a pedir que a esquadra italiana tomasse o primeiro avião de volta para casa, a fim de evitar um vexame ainda maior. Quando os italianos souberam que argentinos e brasileiros seriam seus adversários na segunda fase, o técnico Enzo Bearzot declarou: "Enfrentaremos os atuais e os futuros campeões". A Itália estava desacreditada.

No entanto, contra a Argentina, a equipe pareceu renascer das cinzas. Mesmo não jogando bem, o time de Bearzot venceu sua primeira partida na competição: 2 a 1. Paolo Rossi, mais uma vez, passou em branco, o que fez os tiffosi se perguntarem o porquê do técnico Bearzot não ter levado o artilheiro Roberto Pruzzo para a Espanha. A resposta viria seis dias depois.


Antes do jogo contra a Argentina, Bearzot disse a um jornalista brasileiro que "a Itália precisava aproveitar o momento difícil que os argentinos estavam vivendo", referindo-se à recente derrota platina na Guerra das Malvinas.

"Decidiremos o jogo indo à frente, sem recuar a nossa equipe. Somos melhores." A declaração de Telê parecia ousada, visto que o Brasil jogava pelo empate — e a Itália, pela paz. O meio-campo Falcão pensava diferente de seu técnico: "Acredito que a seleção italiana é uma adversária muito perigosa, ao contrário do que estão falando". O homem que seria chamado de "Rei de Roma" ao final da temporada era um dos poucos jogadores sem delírios de grandeza.

Naquele dia, o ônibus que levou a Seleção Brasileira do hotel para o Estádio Sarrià fez um caminho diferente do habitual. A mudança de trajeto foi vista como um sinal de mau agouro. Na verdade, quem realmente mudou os rumos da Seleção Brasileira, em 5 de julho de 1982, foi Paolo Rossi.

O futebol-arte começou a perder para o futebol tático logo a 5min de jogo. Cabrini aproveitou o espaço vazio do lado direito brasileiro e cruzou na cabeça de Paolo Rossi, livre na área, fazer 1 a 0 — nas costas de Júnior. A Itália conhecia os pontos falhos do adversário, ao contrário do Brasil. O time de Telê podia não ser taticamente perfeito, mas tinha talento. E através dele, a Seleção chegou ao gol de empate. Após passe de Zico, Sócrates invadiu a área e bateu entre Zoff e a trave: um arremate cirúrgico do doutor, aos 12min: 1 a 1.


Poucos minutos após Serginho perder um gol na cara de Zoff, Sócrates empata no Sarrià. "Foram os trinta dias mais perdidos da minha vida", desabafou o doutor, depois da Copa.

Aos 25min, o Brasil voltou a errar. Toninho Cerezo tentou um passe pelo meio da defesa brasileira e foi interceptado por Rossi. Enquanto o camisa 20 comemorava seu segundo gol na partida, o volante se entregava às lágrimas no meio-campo. Vendo a cena, o lateral Júnior correu em sua direção e repreendeu o companheiro. "Se você não parar de chorar agora, meto-lhe a mão na cara. Este é um jogo para homens, Toninho. Se você está com medo, saia logo." A sensibilidade de Cerezo e a raiva de Júnior eram reflexo de um time que não estava preparado para perder — muito menos para ganhar.

O Brasil se recompôs na etapa complementar e chegou mais uma vez ao empate. Aos 22min, Júnior tocou para Falcão, que se livrou da marcação e, da entrada da área, chutou sem chances para Zoff. 2 a 2, o resultado classificava o Brasil.


Depois de entregar a bola de bandeja para Paolo Rossi, Toninho Cerezo foi decisivo no segundo gol brasileiro. Ele chamou a marcação de Tardelli e deixou a entrada da área livre para Falcão marcar e extravasar sua alegria.

Sete minutos depois, a zaga brasileira cometeu seu terceiro erro — fatal — na partida. Na cobrança de um escanteio, cedido de graça após Cerezo recuar mal para Waldir Peres, a bola sobrou para Paolo Rossi, sozinho na pequena área, fazer o terceiro dele e da Itália.

Atordoada, a seleção canarinho ainda sofreu o quarto gol aos 42min, de Antognoni. No entanto, o gol foi anulado pelo árbitro israelense Abraham Klein, que marcou impedimento — inexistente — no lance. Quiseram os deuses da bola que a amarga derrota do futebol-arte brasileiro tivesse apenas um protagonista: Paolo Rossi.

Quem apostou na Itália se deu bem.

O "Carrasco do Sarrià", que não havia marcado nenhum gol em 22 dias de disputa, fez logo três contra o Brasil. Em sua autobiografia lançada na Itália, em 2002, Paolo Rossi disse: "Eu fiz o Brasil chorar."