quinta-feira, 1 de maio de 2014

1978 | La Madre de Quiroga

Para ler o texto anterior, "De Volta para o Ponto Futuro", clique aqui.


Mais uma quinta-feira, e lá estavam elas. Destemidas, porém desconsoladas. Em frente à Casa Rosada, mães de crianças desaparecidas durante a ditadura militar ainda procuram manter a cicatriz aberta na memória do povo argentino. “Las Madres de la Plaza de Mayo” (“As Mães da Praça de Maio”, em português) virou filme e ganhou um Oscar, mas, para elas, o verdadeiro prêmio seria o retorno de seus filhos. Entretanto, em 1978, nenhuma mãe quis tanto que seu filho desaparecesse do mapa — para sua própria segurança — como a mãe do goleiro peruano Ramón Quiroga, o personagem central do maior escândalo da história das Copas do Mundo.

O governo militar, entre 1976 e 1983, se apropriou de cerca de 500 bebês, muitos deles nascidos na clandestinidade de centros de tortura, delegacias e hospitais militares.

Nascido e criado nas redondezas do Gigante de Arroyito, estádio do Rosario Central, Quiroga, argentino de nascimento, viu no futebol a chance de uma vida melhor. Sem habilidade para jogar na linha, acabou se encontrando no gol, apesar da baixa estatura (1,71 m). Foi campeão argentino pelo próprio Rosario Central, e depois de muitas idas e vindas, firmou-se no Sporting Cristal, do Peru. Naturalizou-se peruano e foi um dos principais responsáveis pela classificação do país à Copa de 78.

Depois de uma campanha primorosa na primeira fase, a seleção peruana foi derrotada por 3 a 0 pelo o Brasil e, graças a uma atuação inspiradíssima de Quiroga, perdeu apenas de 1 a 0 para a Polônia. Na última partida, contra a Argentina, justamente no estádio onde nasceu, em Rosario, Quiroga foi do sonho ao pesadelo.

Quiroga comemora um dos gols do Peru contra a Escócia, na vitória por 3 a 1, na primeira fase da Copa. Ele dizia-se “argentino de nascimento e peruano de coração”.

Para ir à decisão da Copa, a Argentina precisava golear por, no mínimo, quatro gols o Peru. Contudo, o time argentino teria que superar dois desafios. O primeiro: desde que assumira a seleção alviceleste, o time de Menotti jamais havia vencido por uma diferença maior que três gols. O segundo: o Peru não levava uma goleada havia três anos. Para complicar ainda mais a situação, meses antes da Copa, Argentina e Peru fizeram dois amistosos. Os hermanos venceram nas duas oportunidades, mas por uma pequena diferença de gols (2 a 1, em Buenos Aires, e 3 a 1, em Lima).

Quando a bola rolou, o Peru parecia bem disposto a botar água no vinho argentino — dois gols perdidos nos minutos iniciais; um deles chegando a acertar a trave de Fillol. Aos 21min, Mario Kempes tabelou com Passarella e fez 1 a 0. Aos 43min, o zagueiro Tarantini, de cabeça, marcou o segundo. A porteira estava aberta.

Veio o segundo tempo e, com ele, um festival de erros do time peruano, que levantaram suspeitas. Kempes voltou às redes no primeiro minuto, depois da falha grotesca da defesa alvirrubra: 3 a 0. Quatro minutos depois, Luque mergulhou sozinho na área peruana para fazer o placar que a Argentina precisava: 4 a 0. Não contente, os platinos queriam mais. Houseman, aos 25min, fez o quinto, após a bola passar fácil por Quiroga, vinda da linha de fundo. Para fechar, aos 27min, Luque aproveitou o cochilo da defesa peruana e marcou o sexto. Quase 50 anos depois, a Argentina voltava à final da Copa — tirando o Brasil no saldo de gols.

As polêmicas em cima da partida começaram quando o goleiro argentino Fillol declarou que “o Brasil teve chances de fazer mais de três gols contra o Peru e não fez”, completando que eles, os argentinos, aproveitaram todas as oportunidades. O atacante Mario Kempes, por sua vez, foi mais incisivo: “Quem fala que o Peru facilitou as coisas não merece respeito. Só pode ter partido de alguém com o coração cheio de rancor”. O goleiro Quiroga, principal alvo das acusações de ‘corpo mole’ no time peruano, limitou-se a dizer: “Caímos de pé”.

Antes do início do confronto, alguns jogadores peruanos teriam pedido ao técnico Marcos Calderón que não escalasse o goleiro “argentino” contra sua “ex-pátria”.

Enquanto isso, no Grupo A da fase final, a Holanda garantia vaga em sua segunda final de Copa consecutiva. Depois de golear a Áustria (5 a 1) e empatar com a Alemanha Ocidental (2 a 2), o time laranja venceu a Itália, na rodada decisiva, em um jogo no mínimo curioso. O holandês Brandts entrou para a história dos Mundiais ao fazer um gol contra e outro a favor na mesma partida — os holandeses venceram por 2 a 1.

Sepp Maier se estica para fazer uma defesa na revanche da final de 74, entre alemães e holandeses. O empate por 2 a 2 tirou as chances da Alemanha Ocidental de disputar, pelo menos, a terceira posição — fato que não ocorria desde a Copa de 1962.

Donos das melhores campanhas da Copa, Brasil e Itália tiveram que se contentar com a disputa pelo terceiro lugar. Jogando pela primeira vez em Buenos Aires na competição, a Seleção Brasileira saiu perdendo. Aos 38min, Paolo Rossi — ainda um ilustre desconhecido para a torcida ‘brazuca’ — cruzou para Causio, sem marcação: Itália 1 a 0. E se não fosse a trave, carimbada duas vezes pelos italianos, a tarde cinzenta na capital argentina teria sido negra para o Brasil.

A Seleção voltou com os mesmos jogadores do intervalo, mas parecia outro time. Aos 19min, o cruzamento de Nelinho ganhou um efeito surpreendente, demais para a perspicácia do goleiro Zoff, e morreu no fundo da rede. Com o jogo empatado em 1 a 1, Rivellino entrou no lugar de Cerezo e ganhou o direito de se despedir de uma Copa do Mundo jogando. Seus toques de classe deram mais glamour a uma partida desinteressante. Animada, a Seleção cresceu. Aos 26min, Rivellino colocou no peito de Jorge Mendonça, que ajeitou para o chute certeiro de Dirceu: 2 a 1, placar final. A Seleção terminava a Copa como a única invicta, apesar de ficar sem o título. Para o técnico Cláudio Coutinho, o Brasil era o “campeão moral” do torneio.

Roberto Dinamite disputa a bola com Claudio Gentile, da Itália. “Essa coisa de campeão moral não existe”, declarou Roberto.

No dia 25 de junho, no estádio Monumental de Núñez, em Buenos Aires, a chuva de papel picado azul e branco recebeu Argentina e Holanda, duas seleções que jamais haviam sido campeãs — fato inédito até então em finais. Os holandeses tiveram que esperar quase cinco minutos pela entrada dos anfitriões em campo, o que contribuiu para uma ovação de ofensas por parte dos fervorosos torcedores da casa. Os insultos se transformaram em aplausos quando, enfim, o time alviceleste adentrou o gramado.

O primeiro tempo teve o domínio da Argentina, mas a melhor chance saiu dos pés do holandês Rep, que Fillol salvou. Aos 38min. Kempes, o filho bem-amado da nação, recebeu de Luque, penetrou a defesa holandesa e abriu o placar. Com a vantagem argentina, o nervosismo e a fragilidade do árbitro italiano Sergio Gonella, as faltas ficaram mais violentas e, por um momento, o futebol passou a coadjuvante.

A marcação do argentino Tarantini no holandês Neeskens tirou mais do que suor dos dois jogadores.

A Holanda voltou mais aguerrida do intervalo, assim como o goleiro argentino ‘Pato’ Fillol. No entanto, a sete minutos do apito final, o arqueiro argentino nada pode fazer, quando René van der Kerkhof cruzou para Dick Nanninga, de cabeça, empatar o jogo. Ainda havia tempo para mais um susto: aos 44min, Rensenbrink acertou a trave de Fillol. O lance produziu um enorme silêncio nas arquibancadas do Monumental de Núñez, que só foi quebrado pelo súbito ataque cardíaco de um torcedor de 49 anos — socorrido a tempo de ver a prorrogação.

As pernas exauridas dos holandeses deram início a mais 30 minutos de sofrimento. A catimba e o cansaço se sobrepuseram à força. Mas Mario Kempes teve disposição o suficiente para invadir a área, se livrar de três defensores, dividir com o goleiro Jongbloed e botar a bola para dentro. Ufa! Um gol de tirar o fôlego: Argentina 2 a 1.

Kempes comemora seu segundo gol na final. Depois de passar a primeira fase em branco, o jogador do Valencia — único "estrangeiro" da equipe — raspou o bigode, a pedido do técnico. A superstição de Menotti deu certo: Kempes fez seis gols e foi o artilheiro da Copa.

O golpe — ou apenas gol — de misericórdia veio nos minutos finais: Bertoni fez 3 a 1. Os holandeses chegaram a reclamar de um toque de mão de Mario Kempes no lance. Em vão: a Argentina, enfim, comemorava o título de uma Copa do Mundo.

O “futebol total” se despede sem o triunfo maior. A Holanda teria que amargar o fardo de dois vice-campeonatos mundiais consecutivos.

Aclamado pela torcida argentina enlouquecida que invadiu o campo, o técnico César Luís Menotti deu uma última declaração: “Felicito o meu colega Cláudio Coutinho por seu campeonato moral e, também, desejaria que ele me felicitasse por meu campeonato real”.

No pódio improvisado sobre o gramado, TVs do mundo todo mostraram o sorridente e sanguinário ditador Jorge Rafael Videla, em meio a delegados da FIFA e outras autoridades, entregar a taça ao capitão Daniel Passarella. Nas casas do país vizinho, porém, os milhões de brasileiros que assistiam à partida só enxergaram uma pessoa entregar o troféu — de mão beijada — aos argentinos. Neste momento, a mãe de Quiroga foi brevemente citada.

Passarella dá a volta olímpica nos braços da torcida, logo após os holandeses virarem de costas para o ditador na hora de receber suas medalhas de prata.