sábado, 12 de abril de 2014

1970 | Visão de Craque

Para ler o texto anterior, "Os Homens do Presidente", clique aqui.


A retina é uma membrana muito fina, flexível e, acima de tudo, delicada. Através dela, a imagem se converte em impulsos elétricos, que chegam até a área do cérebro responsável pela visão. A retina não se prende ao globo ocular, o que pode causar, dependendo do trauma, um descolamento. Se não tratado depressa, leva à perda total da visão. Em setembro de 1969, descolamento da retina foi o diagnóstico de Tostão.

O craque do Cruzeiro era inteligente dentro e fora do campo. Educado e culto, gostava de ler autores incomuns e estava sempre ligado nas atualidades. Preocupava-se com as injustiças sociais e defendia a liberdade e a democracia. Se fosse inglês, provavelmente seria chamado de gentleman.


Nem no hospital Tostão largou a bola.

Aos 22 anos, numa partida contra o Corinthians, no Pacaembu, Tostão recebeu um forte impacto de raspão no olho esquerdo, depois da bola chutada pelo zagueiro Ditão. O olho, que já estava lesado desde o amistoso da Seleção Brasileira, dois meses antes, em Bogotá, machucou de vez.

O drama mobilizou o País. Submetido à cirurgia, em Houston, no Texas, o craque mineiro só foi liberado para voltar aos gramados a três meses da Copa. Ao contrário do médico Lídio Toledo, o técnico Zagallo acreditou na recuperação do jogador e o convocou para a Copa — provavelmente porque “Tostão Seleção” tem treze letras.

Sua visão nunca mais foi a mesma. Com o olho esquerdo comprometido, Tostão desenvolveu um olhar cerebral como poucos, que o transformou em um dos melhores jogadores da Copa de 70. Passou em branco na partida de estreia, contra a Tchecoslováquia, mas teve o privilégio de ser o único brasileiro a ver de perto, por baixo da parábola da bola, o lance que Pelé imortalizou.

O goleiro tcheco Viktor corre atrás da sorte. Desta vez, ela estava ao seu lado.

Ao perceber o goleiro tchecoslovaco Ivo Viktor adiantado, o Rei ajeitou o corpo, com a calma de sempre, e chutou. A força do arremate imprimiu à bola uma velocidade de 104 km/h. Ela subiu e, como um míssel, desceu rápida, 40 metros depois. Viktor, desesperado, correu para proteger sua meta. Qual foi o seu alívio quando a bola passou a centímetros da trave. O “gol que Pelé não fez” durou cerca de três segundos, mas ficou gravado para sempre na memória.

De papo de boteco a artigo científico, o feito — ou não feito — inspirou muitos outros atletas a tentar fazer um gol do meio de campo. Nomes consagrados como Beckham, Rivaldo (duas vezes) e Maradona tiveram êxito. Porém, o mundo dos golaços não vive só de craques. Jogadores medianos, para não dizer medíocres — e aí vem uma lista com o venezuelano Rey, o canadense De Rosario e o holandês Vlaar —, também conseguiram, o que nos leva a pensar que o mais impressionante não é o fato de a bola não ter entrado. Pelo contrário, é como Pelé conseguiu perder um gol desses.

O lance inusitado aconteceu quando o quinto confronto entre Brasil e Tchecoslováquia em Mundiais estava empatado por 1 a 1. Aos 11min, Petráš abriu o placar em uma grande jogada em cima de Brito, ganhando na corrida do zagueiro brasileiro e finalizando fora do alcance de Félix. Na comemoração, se ajoelhou perto da linha lateral e fez o sinal da cruz; acabou sendo advertido pela comissão técnica — manifestações de cunho religioso não eram permitidas entre os países do eixo comunista. Rivellino empatou em uma cobrança de falta violenta, aos 24min.

Depois do gol de falta na estreia, Rivellino passou a ser chamado de "Patada Atômica" pelos mexicanos.

Confiantes, os tchecos foram ao ataque no segundo tempo. Porém, aos 14min, o Brasil mostrou quem realmente entendia de tranquilidade. Gérson lançou no peito de Pelé, que dominou no ar, esperou a bola amaciar no gramado e, marcado, chutou forte, no canto superior de Viktor. Brasil, de virada, 2 a 1.

Pelé comemora o gol da virada sobre os tchecos. O lendário soco no ar ficaria perfeito após o chute do meio de campo — coisas do destino.

O Brasil era muito superior e o banho de bola continuou. Dois minutos depois, Gérson fez outro lançamento espetacular, desta vez para Jairzinho. Assim como Pelé, o camisa 7 matou a bola no peito, mas só depois de dar um chapéu no goleiro Viktor: 3 a 1. Cansado, Gérson acabou saindo para a entrada de Paulo César Caju, aos 27min. O Canhota de Ouro entrou para a história não só por seus gols e lançamentos, mas também por ter sido o primeiro jogador brasileiro substituído num jogo de futebol.

Jairzinho ainda faria o quarto gol, aos 38min, em jogada individual. A goleada por 4 a 1 logo na estreia trouxe de volta a esperança. Era o começo de um espetáculo de encher os olhos.

Jairzinho chuta para fechar a goleada. Ele fez gols em todos os jogos da Seleção Brasileira na Copa.