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A retina é
uma membrana muito fina, flexível e, acima de tudo, delicada. Através dela, a
imagem se converte em impulsos elétricos, que chegam até a área do cérebro responsável pela visão. A retina não se prende ao globo ocular, o que pode
causar, dependendo do trauma, um descolamento. Se não tratado depressa, leva à perda total da visão. Em setembro de 1969, descolamento da retina foi o
diagnóstico de Tostão.
O craque do
Cruzeiro era inteligente dentro e fora do campo. Educado e culto, gostava de
ler autores incomuns e estava sempre ligado nas atualidades. Preocupava-se com
as injustiças sociais e defendia a liberdade e a democracia. Se fosse inglês,
provavelmente seria chamado de gentleman.
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Nem no hospital Tostão largou a bola. |
Aos 22 anos,
numa partida contra o Corinthians, no Pacaembu, Tostão recebeu um forte impacto
de raspão no olho esquerdo, depois da bola chutada pelo zagueiro Ditão. O olho,
que já estava lesado desde o amistoso da Seleção Brasileira, dois meses antes,
em Bogotá, machucou de vez.
O drama
mobilizou o País. Submetido à cirurgia, em Houston, no Texas, o craque mineiro
só foi liberado para voltar aos gramados a três meses da Copa. Ao contrário do
médico Lídio Toledo, o técnico Zagallo acreditou na recuperação do jogador e o
convocou para a Copa — provavelmente porque “Tostão Seleção” tem treze letras.
Sua visão
nunca mais foi a mesma. Com o olho esquerdo comprometido, Tostão desenvolveu um
olhar cerebral como poucos, que o transformou em um dos melhores jogadores da
Copa de 70. Passou em branco na partida de estreia, contra a Tchecoslováquia,
mas teve o privilégio de ser o único brasileiro a ver de perto, por baixo da
parábola da bola, o lance que Pelé imortalizou.
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O goleiro tcheco Viktor corre atrás da sorte. Desta vez, ela estava ao seu lado. |
Ao perceber o goleiro
tchecoslovaco Ivo Viktor adiantado, o Rei ajeitou o corpo, com a calma de
sempre, e chutou. A força do arremate imprimiu à bola uma velocidade de 104
km/h. Ela subiu e, como um míssel, desceu rápida, 40 metros depois. Viktor, desesperado, correu para proteger sua meta.
Qual foi o seu alívio quando a bola passou a centímetros da trave. O “gol que
Pelé não fez” durou cerca de três segundos, mas ficou gravado para sempre na
memória.
De papo de boteco a artigo
científico, o feito — ou não feito — inspirou muitos outros atletas a tentar
fazer um gol do meio de campo. Nomes consagrados como Beckham, Rivaldo (duas
vezes) e Maradona tiveram êxito. Porém, o mundo dos golaços não vive só de
craques. Jogadores medianos, para não dizer medíocres — e aí vem uma lista com o
venezuelano Rey, o canadense De Rosario e o holandês Vlaar —, também conseguiram,
o que nos leva a pensar que o mais impressionante não é o fato de a bola não
ter entrado. Pelo contrário, é como Pelé conseguiu perder um gol desses.
O lance inusitado aconteceu quando o quinto confronto entre Brasil e Tchecoslováquia em Mundiais estava empatado por 1 a 1. Aos 11min, Petráš abriu o placar em uma grande jogada em cima de Brito, ganhando na corrida do zagueiro brasileiro e finalizando fora do alcance de Félix. Na comemoração, se ajoelhou perto da linha lateral e fez o sinal da cruz; acabou sendo advertido pela comissão técnica — manifestações de cunho religioso não eram permitidas entre os países do eixo comunista. Rivellino empatou em uma cobrança de falta violenta, aos 24min.
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Depois do gol de falta na estreia, Rivellino passou a ser chamado de "Patada Atômica" pelos mexicanos. |
Confiantes, os tchecos foram
ao ataque no segundo tempo. Porém, aos 14min, o Brasil mostrou quem realmente
entendia de tranquilidade. Gérson lançou no peito de Pelé, que dominou no ar,
esperou a bola amaciar no gramado e, marcado, chutou forte, no
canto superior de Viktor. Brasil, de virada, 2 a 1.
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Pelé comemora o gol da virada sobre os tchecos. O lendário soco no ar ficaria perfeito após o chute do meio de campo — coisas do destino. |
O Brasil era muito superior
e o banho de bola continuou. Dois minutos depois, Gérson fez outro lançamento
espetacular, desta vez para Jairzinho. Assim como Pelé, o camisa 7 matou a bola
no peito, mas só depois de dar um chapéu no goleiro Viktor: 3 a 1. Cansado,
Gérson acabou saindo para a entrada de Paulo César Caju, aos 27min. O Canhota
de Ouro entrou para a história não só por seus gols e lançamentos, mas também
por ter sido o primeiro jogador brasileiro substituído num jogo de futebol.
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Jairzinho chuta para fechar a goleada. Ele fez gols em todos os jogos da Seleção Brasileira na Copa. |