terça-feira, 27 de maio de 2014

1990 | Queda e Apogeu

Para ler o texto anterior, "1990 | Me Engana que Eu Gosto", clique aqui.


As ruas estavam tomadas. Milhares de pessoas celebravam, se abraçavam e se beijavam, sem nunca antes terem se visto. Outras tantas bebiam cerveja gratuita em bares, servida pelos próprios estabelecimentos. Tudo em ritmo de batucada e samba. Porém, em vez de subir em trios elétricos, o povo estava aglomerado sobre o muro; e no lugar de pandeiros e tamborins, tinham martelos e picaretas nas mãos. Era 9 de novembro de 1989, e Berlim vivia um verdadeiro Carnaval fora de época.

Nas cercanias do Portão de Brandeburgo, um dos principais pontos de travessia do muro, cidadãos das duas Berlins passavam de um lado (oriental) para o outro (ocidental, e vice-versa) pelo simples prazer de saciar — matar, nunca mais — a curiosidade. Afinal, após 27 anos, os berlinenses podiam sentir a sensação de estarem juntos e livres novamente.


A queda do Muro de Berlim sepultou a Guerra Fria, deu início a reunificação alemã e acelerou o fim da União Soviética (em 1991), além de motivar diversos desmembramentos territoriais no Leste Europeu.

Enquanto uma muralha ruía, outra se erguia no centro-sul da Europa. Seu nome: Walter Zenga. Com a vitória por 1 a 0 sobre a Argélia, no dia seguinte à queda do Muro de Berlim, o goleiro italiano completou 103 minutos sem tomar gols pela seleção — o último havia sido do brasileiro André Cruz, em outubro. A squadra italiana ainda disputou mais cinco partidas amistosas antes de estrear na Copa. Quando a equipe entrou no estádio Olímpico de Roma para enfrentar a Áustria, no dia 9 de junho de 1990, Zenga estava há 450 minutos sem ser vazado.

No entanto, o time do técnico Azeglio Vicini só havia marcado um gol naquele ano. Quatro empates por 0 a 0 eram preocupantes mesmo para quem jogava o Mundial em casa. Na estreia não foi diferente. O sofrimento dos tifosi permeou quase toda a partida, até que, aos 33min da etapa final, Salvatore Schillaci marcou o gol salvador. Ele entrara na partida dois minutos antes no lugar de Carnevale. Era a sua segunda partida com a camisa azul e o seu primeiro gol com ela.

Schillaci virou titular na terceira partida da Itália, quando a Azzurra venceu a Tchecoslováquia por 2 a 0 — um gol dele — e, enfim, ultrapassou a marca de um gol por partida, depois de nove meses. Com ele em campo, a Itália alcançou três vitórias no Grupo A — havia vencido os Estados Unidos por 1 a 0, na segunda rodada, com gol de Giannini. A anfitriã chegava à segunda fase como favorita e 'Totó' Schillaci como o xodó da Copa.


As manchetes da imprensa italiana à época revelavam a devoção italiana por Schillaci: "Totó, o gênio do gol", "Totó, você nos faz sonhar" e "Com Totó a festa não acaba".

O siciliano de olhos esbugalhados que corria enlouquecido a cada gol que marcava embalou a Azzurra. Nos 2 a 0 sobre o Uruguai, nas oitavas, Totó marcou o primeiro num belo chute de fora da área. Na vitória de 1 a 0 diante da Irlanda, nas quartas, o atacante mostrou que também era oportunista. No arremate de Donadoni, o goleiro Pat Bonner rebateu a bola no pé do artilheiro, que aproveitou para marcar o seu quarto gol na competição. Mas não era só Schillaci que vivia um conto de fadas.

Na Argentina de Maradona, adversária da Itália nas semifinais, havia também um predestinado. Assim como Totó, o goleiro Sergio Goycochea saiu do banco de reservas e se tornou o principal responsável pela Argentina ter ido tão longe. Depois de segurar o Brasil nas oitavas, o goleiro foi o herói da classificação contra a Iugoslávia, nas quartas de final. O empate por 0 a 0 levou a decisão para os pênaltis, e o arqueiro pegou duas cobranças — de Brnović e Hadzibegić.


Goycochea defendeu quatro pênaltis na Copa. Ele entrou aos 11min do primeiro tempo da partida contra a URSS, depois que o goleiro titular Pumpido fraturou a perna numa dividida com o zagueiro Olarticoechea.

A semifinal entre Itália e Argentina, em Nápoles, foi diferente de todas as outras já disputadas em uma Copa do Mundo. A começar pelos tifosi napolitanos, que, em parte, torceram para Argentina e não para a Itália. Isso graças a uma divindade chamada Maradona, que tirou o pequeno Napoli do anonimato com dois scudettos. Até mesmo os italianos fiéis se sentiram na obrigação de dar explicações: "Desculpe, Dieguito, nós te amamos, mas a Itália é a nossa pátria", dizia uma das faixas nas arquibancadas do estádio San Paolo. A genialidade de Maradona havia tomado proporções inimagináveis ao fazer um povo duvidar de seu próprio sentimento.

Em campo, o gol de Schillaci não foi novidade para ninguém. O artilheiro marcou seu quinto na Copa logo a 17min, aproveitando a rebatida do goleiro, assim como acontecera frente à Irlanda. Tudo levava a crer que a Itália disputaria o tetra em seus domínios, mas os tifosi não contavam com a falha de Zenga, aos 22min do segundo tempo. O goleiro italiano saiu mal do gol e Caniggia, o carrasco dos tricampeões, desviou de cabeça para o fundo das redes. Acabava ali uma invencibilidade de 517 minutos de Zenga sem sofrer gols — 967 minutos, se contarmos os amistosos.

O empate seguiu prorrogação adentro, e a angústia aumentou quando o árbitro Michel Vautrot se esqueceu de olhar o relógio: o tempo extra durou 8 minutos a mais do que deveria. Extenuados, italianos e argentinos acabaram decidindo a vaga nos pênaltis. Foi então que o destino brilhou mais uma vez para Goychochea, que defendeu as cobranças de Donadoni e Serena e colocou a Argentina de Maradona na final. A cidade de Nápoles estava dividida entre alegrias e tristezas.


Maradona observa a Etrusco — a bola da Copa — vencer Zenga após 517 minutos. Depois de sorrir nas semifinais, o craque argentino chorou na decisão, em Roma. Jamais um capitão levantou a taça duas vezes.

Pela primeira vez na história, uma final de Copa do Mundo se repetiu. Argentina e Alemanha Ocidental estavam de volta à decisão depois de apenas quatro anos. O time de Franz Beckenbauer era a única luz no fim do túnel de um futebol desesperado por arte. Os germânicos chegaram a ensaiar um espetáculo ao golear a Iugoslávia (4 a 1) e os Emirados Árabes (5 a 1) nas duas primeiras partidas do Grupo D, mas o empate com a Colômbia por 1 a 1 — Rincón empatou nos acréscimos — deixou claro que os artistas da bola haviam ficado no passado.

Era a vez da eficiência tática. E da rivalidade. Contra a Holanda nas oitavas, a derrota em casa pela Euro 88 ainda estava fresca na memória alemã. O clássico também envolveu os dois clubes de Milão, local do confronto. Do lado germânico, Brehme, Matthäus e Klinsmann faziam parte da Internazionale; do lado holandês, Rijkaard, Gullit e van Basten defendiam o Milan. Com tantos egos a serem administrados, a partida não poderia mesmo começar bem.

Aos 20min, Rijkaard e Völler se desentenderam na pequena área defendida pela Holanda e foram expulsos. Na saída do campo, o holandês deu uma cusparada no alemão, que ameaçou revidar, mas se segurou. Sem os brigões, a partida voltou à civilidade. Klinsmann, de cabeça, abriu o placar aos 6min da etapa final, após o cruzamento de Buchwald. Brehme fez o segundo da Alemanha Ocidental: um golaço do bico da grande área, a 8 minutos do fim. Coube a Koeman, de pênalti, fazer o gol de honra holandês, aos 44min do segundo tempo.


A atitude lamentável de Rijkaard só aumentou a decepção com o futebol holandês. Ainda pelas oitavas, a Espanha foi eliminada pela Iugoslávia (2 a 1) e a Irlanda tirou a Romênia nos pênaltis (5 a 4), depois do 0 a 0 no tempo normal e na prorrogação.

Também de pênalti foi o gol do excelente Lothar Matthäus contra a surpresa tcheca, nas quartas de final. Com cinco tentos assinalados, o tcheco Skuhravý se despediu da Copa como artilheiro momentâneo — dois contra os Estados Unidos, na fase de grupos, e três contra a Costa Rica, nas oitavas. Foi a última Copa da Tchecoslováquia, que se dissolveria em duas nações em 1992: República Tcheca e Eslováquia.

As semifinais da Copa de 90 colocaram frente a frente, pela última vez, quatro campeões mundiais. No dia seguinte à eliminação italiana, a Inglaterra voltou a disputar uma semifinal depois de 24 anos, apesar de ser apenas a segunda vez que ficava entre os quatro. Com gols de Brehme, para a Alemanha Ocidental, e Lineker, para a Inglaterra, a outra vaga na finalíssima também foi decidida nos pênaltis. O goleiro alemão Illgner defendeu a cobrança de Pearce e Waddle chutou para o alto a oportunidade inglesa de ir à final.

Illgner pega o pênalti de Pearce. A Copa de 90 teve o recorde de decisões por pênalti: quatro. A partida foi arbitrada pelo brasileiro José Roberto Wright, que ficou de fora da final por veto alemão, antes mesmo das semifinais — eles acreditavam que a culpa pelos dois vices era das arbitragens brasileiras.

Na grande final, transmitida via satélite para milhões em todo o planeta, Maradona estava só. Sem Caniggia, suspenso, a Argentina perdeu sua única jogada — e a cabeça. Para conter a velocidade alemã, os hermanos abusaram das faltas, algumas delas bastante violentas. Como já era esperado, Monzón foi expulso aos 20min do segundo tempo, depois de atingir Klinsmann pela segunda vez — na primeira, dentro da área, o árbitro fez vista grossa. A Argentina tinha o primeiro jogador expulso em uma final de Copa do Mundo e, com um a menos, limitou-se a se defender.

Faltando cinco minutos para o encerramento do jogo, Völler entrou na área e caiu no choque com Sensini. O árbitro mexicano Edgardo Codesal, notório pela marcação de pênaltis durante o Mundial — que o levaram à decisão — correu imediatamente para a marca da cal, certamente pensando em compensar o erro anterior. Os jogadores argentinos cercaram Codesal e deram peitadas no árbitro, que distribuiu cartões amarelos.

Com a confusão controlada, Brehme se encarregou da cobrança — Matthäus, o cobrador oficial, estava com dores no pé direito. Goycochea, o pegador de pênaltis, chegou a tocar na bola com a ponta dos dedos, mas não conseguiu evitar o gol: Alemanha Ocidental 1 a 0. A Argentina ainda teve mais um jogador expulso, Dezotti, antes do apito final. Enquanto os alemães comemoravam o tricampeonato mundial, os argentinos amargavam o título de equipe mais indisciplinada do torneio. O choro de Maradona representava o último tango em uma final de Copa.


Brehme, autor do gol do título, conversa com um inconformado Maradona durante a partida, em Roma. A Argentina foi a primeira seleção a não marcar gols em uma final de Copa do Mundo.

Em Berlim, os sinos tocaram, os fogos de artifício dominaram os céus e o povo comemorou nas ruas o feito de Beckenbauer e seus comandados. Era um pequeno ensaio do que viria a acontecer três meses depois, na festa da reunificação da Alemanha — apenas e tão somente Alemanha.


Matthäus, o capitão e responsável pela organização do time, levanta a taça. Era a última vez que as Alemanhas competiam separadamente. Sob uma única bandeira, a Alemanha se tornou o mais bem-sucedido país europeu no futebol e na economia.