terça-feira, 20 de maio de 2014

1986 | O Gênio Indomável

Para ler o texto anterior, "L'anniversaire de Platini, clique aqui.


Diego voltou para casa pelo mesmo caminho de todos os dias. Porém, naquela tarde, ele não estava sozinho. Ao seu lado, caminhando pelas ruas de terra da favela onde morava, no subúrbio de Buenos Aires, estava Francis Cornejo, técnico de los Cebollitas. Ainda incrédulo com o que acabara de ver, o treinador pediu à mãe de "Pelusa" (apelido de Diego) que desfizesse aquele mal-entendido. Mas a documentação estava certa. Aquele menino — que na primeira jogada da peneira deu um balão no adversário com sua mágica perna esquerda — tinha mesmo só nove anos de idade. E um sobrenome: Maradona.

Dos 'potreros' (campos de terra) para os gramados, Maradona logo se tornou a criança mais popular da Villa Fiorito. Aos quinze anos, já lotava as arquibancadas em jogos preliminares do Argentinos Juniors. Não demorou muito, subiu aos profissionais. Aos dezessete, foi convocado para a seleção argentina principal. Preterido pelo técnico Menotti, em 78, estreou na Copa de 82, onde foi do céu ao inferno ao ser expulso na eliminação argentina — contra o Brasil. Mais quatro anos de espera, e lá estava ele outra vez. No entanto, mais forte, mais rápido, mais decisivo e, como mostraria no decorrer de sua carreira, mais polêmico do que nunca.

Cornejo e o jovem Maradona. O técnico virou o segundo pai do garoto, que impressionava pela habilidade. Por inúmeras vezes Cornejo utilizou Maradona em categorias acima de sua idade para resolver partidas complicadas — o que funcionava sempre.

A primeira fase de Maradona em 86 foi de certa forma discreta, perto do que ele ainda iria fazer. A Argentina venceu Coreia do Sul (3 a 1) e Bulgária (2 a 0), mas o grande adversário do Grupo A era a então campeã Itália. No empate por 1 a 1, em Puebla, pela segunda rodada, os argentinos reclamaram muito do pênalti para a Azzurra, convertido por Altobelli. Para a sorte platina, Maradona estava inspirado. Lançado por Valdano, aos 34min, o craque ganhou de Scirea na corrida e deu um leve tapa para tirar a bola do alcance de Galli. O arqueiro italiano nem se mexeu, acreditando que ela sairia. Quando percebeu, era tarde demais. A genialidade de Dieguito havia ludibriado mais um.

O gol contra a Itália é um bom exemplo da facilidade com que Maradona passava pelos adversários e batia na bola. Foi o primeiro de cinco gols do Pibe de Oro na Copa do Mundo de 86.

Em um campo encharcado não só pela chuva, mas também pela rivalidade, Argentina e Uruguai duelaram por uma vaga nas quartas de final. 56 anos depois da final em Montevidéu, os hermanos queriam a desforra. A Celeste tinha Francescoli, El Príncipe, com seu estilo clássico e elegante, toque de bola refinado e inteligência apurada. Contudo, a Argentina tinha Maradona. No jogo, o camisa 10 argentino desequilibrou. Com dribles desconcertantes e passes precisos, Dieguito por pouco não transformou a magra vitória argentina — 1 a 0, gol de Pasculli, aos 42min — em goleada. 12 anos para voltar à Copa, e o Uruguai, em 12 dias, já voltava para casa.

Butragueño comemora um de seus quatro gols na vitória da Espanha, por 5 a 1, sobre a Dinamarca, pelas oitavas de final. Em Querétaro, a "Dinamáquina" saiu na frente, mas emperrou em seus próprios erros e tomou a virada: foram dois pênaltis cometidos e um gol dado de presente.

É fato: Maradona lutou na Guerra das Malvinas. Foi no dia 22 de junho de 1986, no estádio Azteca, na Cidade do México — o conflito entre Argentina e Inglaterra havia se estendido para os gramados. Com os nervos à flor da pele, o primeiro tempo foi tenso e, na falta de gols, sobraram faltas. O "melhor" lance acabou sendo o de Maradona na cobrança de um escanteio. Sem espaço para a cobrança, ele arrancou o pau da bandeirinha e foi repreendido pelo auxiliar, que fez o craque recolocá-la no lugar. A rebeldia era a marca do gênio. E seria mostrada no segundo tempo.

Aos 5min da etapa complementar, Maradona começou a jogada que ele mesmo concluiu. O craque tocou para Valdano, que não dominou e permitiu o corte do inglês Hodge. A bola pegou efeito contrário e foi para trás. O goleiro Shilton e Maradona chegaram juntos no lance, ambos com o braço levantado: o esquerdo de Diego venceu o direito do inglês. Enquanto Maradona corria para comemorar — com o punho direito alto e cerrado —, os britânicos corriam para cima do árbitro Ali Bin Nasser, da Tunísia. Para a Inglaterra, o gol havia sido feito com a mão do jogador. Para o juiz, com a cabeça. Para Maradona, com a mão de Deus.

"La Mano de Dios", como ficou conhecido o lance, não foi o primeiro gol que ele fez usando as mãos. Em jogo pela Série A italiana de 1984-85, entre Napoli e Udinese (de Zico), Maradona marcou dessa forma, mas a trapaça foi anulada.

Quatro minutos depois de fazer um gol com a mão, Maradona fez outro; desta vez usando o cérebro. Na jogada, que durou 10,6 segundos, seis ingleses ficaram pelo caminho. Maradona recebeu de Enrique e, como um tanque de guerra, se livrou de Beardsley e Reid. Arrancou pela direita, passou por cima de Fenwick e, sem dar trela para Butcher, driblou Stevens e, por último, o goleiro Shilton. Com Butcher ainda em seu encalço, Maradona chutou para o gol, que a essa altura estava protegido por Hoddle. Mas todo o esforço foi inútil: o Azteca presenciara o "gol do século".

A Inglaterra ainda teve força para diminuir, com Lineker — o que lhe conferiu a artilharia da Copa, com seis gols —, mas não para reagir. Depois da derrota, o atacante inglês chegou a declarar que, se não fosse uma partida tão importante, teria aplaudido o gol de Maradona. "Não se pode marcar um gol assim", concluiu Lineker. Certo ou errado, humilhante ou não, o placar de 2 a 1 amenizou o orgulho ferido dos argentinos. A Guerra das Malvinas, que, para muitos, nunca teve de fato um vencedor, terminava com vitória de Maradona.

Apesar do lance antológico, que ganhou até uma camisa comemorativa, escrita "Goal of the century", Maradona não considera este o gol mais bonito de sua carreira. Para ele, o seu "gol do século" foi em 19/02/1980, em um amistoso na Colômbia, pelo Argentinos Juniors, em que driblou quatro marcadores antes de finalizar.

As semifinais da Copa de 86 tiveram clima de revanche. A começar pelo confronto entre França e Alemanha Ocidental, em Guadalajara, um repeteco da Copa de 82. Os alemães abriram o placar logo aos 9min, em uma cobrança de falta de Brehme — um frango do goleiro Bats, herói contra o Brasil. A França pressionou, perdeu chance atrás de chance e, no último minuto, levou o gol de misericórdia, com direito a chapéu de Völler em Bats. Pela segunda Copa consecutiva, os franceses caíam nas semifinais diante dos alemães.

Três dias depois de eliminar a Inglaterra, a Argentina voltou ao Azteca para enfrentar a Bélgica, algoz platina na abertura da Copa de 82. Com moral, Maradona foi novamente o dono do jogo. A cada arrancada, os zagueiros belgas perdiam um pouco de fôlego, que sobrava em Maradona. Na segunda etapa, El Diez precisou de apenas dez minutos para por um ponto final na surpreendente campanha do adversário — a Bélgica eliminara a Espanha nas quartas, depois de 1 a 1 no tempo normal e 5 a 4 nos pênaltis.

No primeiro gol, aos 6min, Maradona mostrou oportunismo, ao receber belo passe de Burruchaga e tocar com categoria na saída de Pfaff, entre dois defensores. No segundo, aos 18min, outra pintura: Dieguito se infiltrou pelo meio da zaga e, driblando quatro belgas, chutou forte no canto esquerdo de Pfaff. Com cinco gols no Mundial, Maradona colocava a Argentina em mais uma final de Copa do Mundo.

Maradona comemora mais um golaço na Copa — o quarto em dois jogos decisivos. Perguntado se o seu gol contra a Bélgica foi tão maravilhoso quanto contra a Inglaterra, El Pibe respondeu: "Maravilha é a Rachel Welch".

Alemanha Ocidental e Argentina entraram em campo, no dia 29 de junho, na Cidade do México, para ver quem seria a segunda seleção da história a levantar a Taça FIFA. O futebol força dos alemães até que conseguiu conter o ímpeto de Maradona, que, marcado de perto por Förster, não teve espaço para arrancar com a bola dominada. Mas o time argentino tinha outros trunfos, e, aos 23min, Burruchaga cobrou falta na cabeça de Brown. O goleiro alemão Schumacher saiu mal pela primeira e única vez em toda a Copa, e sofreu o gol.

A Argentina continuou melhor no segundo tempo. Aos 10min, Enrique lançou Valdano, que só rolou na saída do arqueiro germânico. Com o placar confortável de 2 a 0, os hermanos relaxaram em campo — erro fatal quando se joga contra os alemães. Em seis minutos, a Alemanha Ocidental empatou, em dois lances praticamente idênticos: cobrança de escanteio e finalização na pequena área: primeiro Rummenigge, com o pé, e depois Völler, de cabeça. Para Franz Beckenbauer, técnico da Alemanha Ocidental, já era certo que haveria prorrogação. Mas com Diego em campo, nada é definitivo.

Quando a marcação alemã afrouxou por um segundo, Maradona, vendo-se livre pela primeira vez na partida, só precisou de um toque na bola para botar Burruchaga frente a frente com Schumacher. O camisa 7 avançou com ela dominada e, na saída do goleiro, tocou para o fundo das redes. A bola mal havia entrado na meta alemã e os argentinos já comemoravam a conquista do bicampeonato mundial.

O apito final do discreto Romualdo Arppi Filho — o segundo brasileiro a arbitrar uma decisão de Copa — apenas confirmou o que todos já sabiam: Maradona levou a Argentina ao título. Era a consagração do menino que nasceu pobre e enriqueceu os olhos do mundo com seus dribles e seus golaços. Um gênio capaz de fazer em uma mesma partida um gol com a mão de Deus e outro com o diabo no corpo. Um gênio indomável.






Na voz do locutor argentino Victor Moraes, o êxtase do lance:



"Maradona tem a bola, marcado por dois. Pisa na bola Maradona, arranca pela direita o gênio do futebol mundial... Deixa os adversários pra trás e vai tocar para Burruchaga… 

Sempre Maradona! Gênio! Gênio! Gênio!... tá-tá-tá-tá... Goooool! Me perdoem, quero chorar! Deus santo! Viva o futebol! Golaço! Maradona em uma corrida memorável, na jogada de todos os tempos! Serpente cósmica, de qual planeta você veio? Para deixar tantos ingleses pelo caminho?

Para que o país em um só punho apertado esteja gritando pela Argentina! Graças a Deus pelo futebol. Graças a Deus por essas lágrimas. Graças a Deus por Argentina 2, Inglaterra 0."