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Seis centímetros afastavam a perna direita da
perfeição. Além de curta, era flexionada para dentro. A esquerda, por sua vez,
tendia para fora, o que fazia das pernas duas incoerências anatômicas. O peso
do corpo se apoiava em joelhos malformados e, para piorar, seu comandante era destro.
Difícil imaginar que alguém assim pudesse andar. E não andava mesmo. Corria,
driblava e, com as pernas tortas, entortava. Realmente, aquilo não era humano.
De comum, Manuel Francisco dos Santos só tinha o nome.
Criado com 15 irmãos na extrema pobreza no interior do Rio — um fim de mundo
chamado Pau Grande —, perdeu o pai de cirrose, uma irmã de barriga d’água e
outra ao cair de um caminhão. Da miséria e da tragédia nasceu a lenda.
Desajeitado, aos 14 anos começou no futebol, o que já
era um milagre. Aos 19, casado com Nair, de 16, chegou ao Botafogo. Iletrado, deu
meia dúzia de dribles na “enciclopédia do futebol”, no primeiro teste, e foi
contratado — a pedido do próprio Nilton Santos.
Seu talento manifesto o levou à Seleção. O jeito
irreverente de jogar não mudou. Tornava a driblar o mesmo jogador que acabara
de fintar pelo simples prazer da brincadeira. Rindo, fazia jogadas desconcertantes,
cruzamentos precisos e gols exuberantes. Era a alegria do povo.
Voltou da Suécia nadando em dinheiro, e pagou, em
dólar, as contas atrasadas dos moradores de Pau Grande. Porém, se afundou nas próprias
dívidas. Enganara tantos joões-ninguém nos gramados, que acabou tapeado fora
deles. Foi quando começou a deixar-se driblar por seu maior adversário: a
cachaça.
Entre glórias e humilhações, criatividade e ingenuidade, chegou à Copa de 62 mais experiente e menos irresponsável — dentro de campo. Jogou por ele, por Pelé e pelo Brasil. Virou mito.
Entre glórias e humilhações, criatividade e ingenuidade, chegou à Copa de 62 mais experiente e menos irresponsável — dentro de campo. Jogou por ele, por Pelé e pelo Brasil. Virou mito.
Clima descontraído na concentração do Brasil, em Viña del Mar. |
Em 13 de junho de 1962, Brasil e Chile fizeram a partida
mais esperada do Mundial. Inicialmente marcado para o Sausalito, em Viña del Mar,
o duelo foi deslocado para o Estádio Nacional, em Santiago, visto que tinha
maior capacidade. Estavam certos: foi o maior público da história do estádio,
chegando a 76.564 espectadores.
Os anfitriões haviam surpreendido os soviéticos, então
campeões europeus, nas quartas de final, e prometiam comemorar a passagem para
a decisão tomando um “autêntico café brasileiro”. A rivalidade era tamanha que,
para evitar possíveis hostilidades, a Seleção Brasileira viajou de trem para a
capital, em vez de ônibus. Desconfiada, a comissão técnica saiu na manhã da partida
para comprar pão, queijo, salame e mortadela. Com medo de um “envenenamento” da
comida no hotel, o almoço foi à base de sanduíches.
Nas arquibancadas do estádio Nacional, uma presença
ilustre refletia um brilho intenso dentro de campo: Elza Soares, a quem foi
prometida a Taça Jules Rimet. Apenas o amor era capaz de explicar a alma endemoniada
que deitou, rolou e fez o diabo naquele dia.
Os chilenos só conseguiam parar os brasileiros na base do pontapé. |
O Brasil abriu o placar logo a 9 minutos do primeiro
tempo, numa jogada que começou bisonha e terminou em golaço. Amarildo furou a
bicicleta, Vavá errou o domínio e a bola sobrou para o imprevisível ponta do
Botafogo chutar, de canhota, no ângulo do goleiro Escuti: 1 a 0.
Melhor em campo, a Seleção chegou ao segundo gol aos
32 minutos. Zagallo cobrou o escanteio e o baixinho da camisa sete, do alto de
seus 1,76m, subiu entre três defensores para cabecear. Brasil 2
a 0. Dois dele.
Toro, de falta, descontou para os donos da casa ainda
na primeira etapa, mas o gênio arqueado acabou com as esperanças chilenas. Aos
2 minutos do segundo tempo, bateu o escanteio, com veneno, na cabeça de Vavá: 3
a 1.
Vavá comemora o quarto gol brasileiro: o terceiro dele na Copa do Mundo. |
O Chile não desistiu da luta, e conseguiu seu segundo
gol, aos 16 minutos, num pênalti bem cobrado por Leonel Sánchez. Contudo, aos
33 minutos veio o nocaute brasileiro. Zagallo cruzou da esquerda e Vavá, de
novo, enfiou a cabeça na bola: Brasil 4 a 2.
Já no final da partida, o “anjo” das pernas tortas
mostrou o quanto a sua inocência era proporcional a sua irresponsabilidade.
Fora do lance de bola, deu um “pontapezinho de amizade” — conforme ele mesmo considerou
— em Eladio Rojas, que valorizou a agressão como só os chilenos sabem fazer. O
árbitro peruano Arturo Yamasaki consultou o seu assistente e não pensou duas
vezes: expulsou o atacante.
Didi: "Eu fazia um lançamento e tinha vontade de rir. Ele passava e deixava os homens de bunda no chão". |
No dia seguinte, a capa do jornal “El Mercurio” perguntava
ao craque brasileiro “de que planeta vienes”. Dado o nome da publicação, a resposta
parecia óbvia: Marte. Mas mais curioso que a procedência do jogador era a sua
presença entre os titulares na final da Copa, contra a Tchecoslováquia, visto
que deveria cumprir suspensão automática por ter sido expulso nas semifinais.
No tribunal da FIFA, o árbitro Yamasaki declarou não
ter visto a agressão, e que as informações do bandeirinha, o uruguaio Esteban
Marino, é que determinaram a expulsão do atleta. Convocado pela entidade, Marino
tanto não apareceu para depor, como desapareceu. A versão oficial era que ele
já teria retornado ao seu país. Entretanto, nos bastidores diziam que ele teria recebido uma bela soma em dinheiro para sumir do mapa. O mais provável é que tenha sido abduzido.
Sem provas, o réu foi inocentado.
Jogadores das duas seleções desfilam com a bandeira do Chile após a partida: rivalidade só durante os 90 minutos. |
Para ir à final da Copa de 62, clique no texto "A Alegria do Povo".