segunda-feira, 31 de março de 2014

1962 | O Marciano das Pernas Tortas

Para ver como o Brasil mudou "Da Água para o Vinho" no texto anterior, clique aqui.


Seis centímetros afastavam a perna direita da perfeição. Além de curta, era flexionada para dentro. A esquerda, por sua vez, tendia para fora, o que fazia das pernas duas incoerências anatômicas. O peso do corpo se apoiava em joelhos malformados e, para piorar, seu comandante era destro. Difícil imaginar que alguém assim pudesse andar. E não andava mesmo. Corria, driblava e, com as pernas tortas, entortava. Realmente, aquilo não era humano.

De comum, Manuel Francisco dos Santos só tinha o nome. Criado com 15 irmãos na extrema pobreza no interior do Rio — um fim de mundo chamado Pau Grande —, perdeu o pai de cirrose, uma irmã de barriga d’água e outra ao cair de um caminhão. Da miséria e da tragédia nasceu a lenda.

Desajeitado, aos 14 anos começou no futebol, o que já era um milagre. Aos 19, casado com Nair, de 16, chegou ao Botafogo. Iletrado, deu meia dúzia de dribles na “enciclopédia do futebol”, no primeiro teste, e foi contratado — a pedido do próprio Nilton Santos.

Seu talento manifesto o levou à Seleção. O jeito irreverente de jogar não mudou. Tornava a driblar o mesmo jogador que acabara de fintar pelo simples prazer da brincadeira. Rindo, fazia jogadas desconcertantes, cruzamentos precisos e gols exuberantes. Era a alegria do povo.

Voltou da Suécia nadando em dinheiro, e pagou, em dólar, as contas atrasadas dos moradores de Pau Grande. Porém, se afundou nas próprias dívidas. Enganara tantos joões-ninguém nos gramados, que acabou tapeado fora deles. Foi quando começou a deixar-se driblar por seu maior adversário: a cachaça.

Entre glórias e humilhações, criatividade e ingenuidade, chegou à Copa de 62 mais experiente e menos irresponsável — dentro de campo. Jogou por ele, por Pelé e pelo Brasil. Virou mito.

Clima descontraído na concentração do Brasil, em Viña del Mar.

Em 13 de junho de 1962, Brasil e Chile fizeram a partida mais esperada do Mundial. Inicialmente marcado para o Sausalito, em Viña del Mar, o duelo foi deslocado para o Estádio Nacional, em Santiago, visto que tinha maior capacidade. Estavam certos: foi o maior público da história do estádio, chegando a 76.564 espectadores.

Os anfitriões haviam surpreendido os soviéticos, então campeões europeus, nas quartas de final, e prometiam comemorar a passagem para a decisão tomando um “autêntico café brasileiro”. A rivalidade era tamanha que, para evitar possíveis hostilidades, a Seleção Brasileira viajou de trem para a capital, em vez de ônibus. Desconfiada, a comissão técnica saiu na manhã da partida para comprar pão, queijo, salame e mortadela. Com medo de um “envenenamento” da comida no hotel, o almoço foi à base de sanduíches.

Nas arquibancadas do estádio Nacional, uma presença ilustre refletia um brilho intenso dentro de campo: Elza Soares, a quem foi prometida a Taça Jules Rimet. Apenas o amor era capaz de explicar a alma endemoniada que deitou, rolou e fez o diabo naquele dia.

Os chilenos só conseguiam parar os brasileiros na base do pontapé.

O Brasil abriu o placar logo a 9 minutos do primeiro tempo, numa jogada que começou bisonha e terminou em golaço. Amarildo furou a bicicleta, Vavá errou o domínio e a bola sobrou para o imprevisível ponta do Botafogo chutar, de canhota, no ângulo do goleiro Escuti: 1 a 0.

Melhor em campo, a Seleção chegou ao segundo gol aos 32 minutos. Zagallo cobrou o escanteio e o baixinho da camisa sete, do alto de seus 1,76m, subiu entre três defensores para cabecear. Brasil 2 a 0. Dois dele.

Toro, de falta, descontou para os donos da casa ainda na primeira etapa, mas o gênio arqueado acabou com as esperanças chilenas. Aos 2 minutos do segundo tempo, bateu o escanteio, com veneno, na cabeça de Vavá: 3 a 1.

Vavá comemora o quarto gol brasileiro: o terceiro dele na Copa do Mundo.

O Chile não desistiu da luta, e conseguiu seu segundo gol, aos 16 minutos, num pênalti bem cobrado por Leonel Sánchez. Contudo, aos 33 minutos veio o nocaute brasileiro. Zagallo cruzou da esquerda e Vavá, de novo, enfiou a cabeça na bola: Brasil 4 a 2.

Já no final da partida, o “anjo” das pernas tortas mostrou o quanto a sua inocência era proporcional a sua irresponsabilidade. Fora do lance de bola, deu um “pontapezinho de amizade” — conforme ele mesmo considerou — em Eladio Rojas, que valorizou a agressão como só os chilenos sabem fazer. O árbitro peruano Arturo Yamasaki consultou o seu assistente e não pensou duas vezes: expulsou o atacante.

Didi: "Eu fazia um lançamento e tinha vontade de rir. Ele passava e deixava os homens de bunda no chão".

No dia seguinte, a capa do jornal “El Mercurio” perguntava ao craque brasileiro “de que planeta vienes”. Dado o nome da publicação, a resposta parecia óbvia: Marte. Mas mais curioso que a procedência do jogador era a sua presença entre os titulares na final da Copa, contra a Tchecoslováquia, visto que deveria cumprir suspensão automática por ter sido expulso nas semifinais.

No tribunal da FIFA, o árbitro Yamasaki declarou não ter visto a agressão, e que as informações do bandeirinha, o uruguaio Esteban Marino, é que determinaram a expulsão do atleta. Convocado pela entidade, Marino tanto não apareceu para depor, como desapareceu. A versão oficial era que ele já teria retornado ao seu país. Entretanto, nos bastidores diziam que ele teria recebido uma bela soma em dinheiro para sumir do mapa. O mais provável é que tenha sido abduzido.

Sem provas, o réu foi inocentado.

Jogadores das duas seleções desfilam com a bandeira do Chile após a partida:
rivalidade só durante os 90 minutos.


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