sábado, 29 de março de 2014

1962 | Da Água para o Vinho

Para ler o texto anterior, "Aos Olhos dos Andes", clique aqui.


Jesus — sempre muito sociável — e seus discípulos foram convidados para uma festa de casamento em Caná, na Galileia. A certa altura das bodas, o vinho acabou. À época, ficar sem bebida durante uma festa era visto como um escândalo, além de uma desonra aos noivos.

Cristo, então, mandou encher de água todos os jarros de pedra vazios. Depois de cheios até a borda, Jesus pediu que servissem a água aos convidados. A reação ao provarem o líquido foi de espanto: a água havia se transformado em vinho. Passado o susto, a festa continuou, com muita bebida, e os noivos foram felizes para sempre.

Chamada de “Bodas de Caná”, a passagem bíblica não traz explicações científicas a respeito do processo — o que seria interessante. No entanto, deu origem a uma expressão popular muito conhecida. “Mudar da água para o vinho” indica uma mudança radical de situação, e foi exatamente o que aconteceu com a Seleção em 62. 

Com Puskás em fim de carreira e sem Di Stéfano, contundido, a Espanha decepcionou outra vez.

Depois do empate sem gols diante da Tchecoslováquia e a perda de Pelé, a Seleção Brasileira foi tomada por uma onda de desconfiança. Mesmo jogando pelo empate contra a Espanha, na última rodada do Grupo 3, a ausência do camisa dez era preocupante. A seleção de Aymoré entrou em campo, no Sausalito, em Viña del Mar, com Amarildo no lugar de Pelé. O Brasil ainda tinha Didi, Vavá, Zagallo e Garrincha. Só não contava com o árbitro chileno Sergio Bustamantes.

Com vários craques do Real Madrid no elenco — entre eles Ferenc Puskás, que defendeu a Hungria em 54 —, a Espanha precisava vencer para não se juntar à Itália, Argentina e ao Uruguai, eliminados ainda na primeira fase. Aos 35min, tratou logo de dar as cartas. Adelardo chutou da entrada da área e fez Espanha 1 a 0.

Descontrolada, a Seleção Brasileira se abriu para os contra-ataques espanhóis. Em um deles, já no segundo tempo, Nilton Santos fez falta em Collar dentro da área e, malandro, deu dois passos à frente. A arbitragem não deu o pênalti. Na cobrança da falta, após cruzamento, Peiró acertou uma linda bicicleta, mas o árbitro persistiu no erro: alegou “jogo perigoso” e anulou o gol. Os espanhóis reclamaram muito, fazendo jus ao apelido de “Fúria”.

Faltando 20 minutos para o final, o Brasil chegou ao empate. Zagallo cruzou da linha de fundo e Amarildo completou: 1 a 1. O resultado eliminava a Espanha, que se mandou para o ataque. Com espaço, Garrincha finalmente desencantou. A quatro minutos do fim, ele passou por três marcadores e cruzou na cabeça de Amarildo: 2 a 1.

Amarildo sobe mais que todo mundo no segundo gol brasileiro contra a Espanha.

Depois da partida, Pelé, emocionado, desceu das arquibancadas e foi até o vestiário para falar com o autor dos gols da vitória. Quando chegou lá, Amarildo estava no banho. Pelé não teve dúvidas: entrou de roupa e tudo debaixo do chuveiro e abraçou o seu substituto.

Ao saber que sua contusão o tiraria da Copa, Pelé disse a Amarildo "Você está protegido por Deus".

Da água, o Brasil partiu para o vinho. A Seleção encorpou e ganhou confiança para enfrentar a Inglaterra, nas quartas de final. Velhos conhecidos, os ingleses não viram a cor da bola.

A partida chegou a ser paralisada no primeiro tempo depois que um cachorro invadiu o gramado. O cãozinho mostrou habilidade ao driblar o goleiro inglês Springett e, depois, Garrincha, com uma “ginga de corpo” de dar inveja. Por fim, o atacante Jimmy Greaves ficou de quatro para atrair o cão e agarrá-lo. A tática só deu certo com o animal — nenhum inglês foi capaz de segurar Mané Garrincha.

O primeiro cachorro foi pego. O segundo, ninguém pegou.
Depois de passear pelo gramado, ele passou por baixo do alambrado e sumiu.

O camisa sete foi às redes duas vezes — uma de cabeça e a outra de fora da área — e Vavá uma, depois de pegar o rebote na cobrança de falta de Garrincha. A vitória por 3 a 1 classificou o Brasil para encarar o Chile, nas semifinais. 

A verdade é que Mané começava a decidir a Copa quase sozinho. E ele queria botar café no vinho chileno.


Garrincha não deu a menor chance para a Inglaterra, de Bobby Charlton.






Para ler a história de Garrincha, "O Marciano das Pernas Tortas", clique aqui.