sexta-feira, 9 de maio de 2014

1982 | O Casamento de Battiston


Para ler o texto anterior ,"A Aposta do Técnico", sobre a Tragédia de Sarrià, clique aqui.


A pequena Pierrevillers, no nordeste da França, estava em festa. Anne Gusse e Patrick Battiston iriam se casar. Mas nada de limusines, bufês extravagantes, DJs famosos e decorações faraônicas. Ao contrário do Brasil, os casamentos franceses tendem a ser mais simples e íntimos. A começar pelos noivos, que foram a pé até a casa da família Gusse, onde aconteceu a recepção dos convidados — pouco mais de cem. Tudo muito bem organizado e, como não poderia deixar de ser, chique.

Depois do brunch vieram os votos. Os pais falaram, emocionados e, então, a palavra passou para os amigos do casal. Um deles, em especial, chamou a atenção apenas por estar presente. Nove dias antes do casamento, o tal amigo havia agredido o noivo e o deixado desacordado. Seu nome era Harald Schumacher.

O casal Anne Gusse e Patrick Battiston recém-casados.

Battiston e Schumacher se conheceram em Sevilha, durante a semifinal da Copa do Mundo de 1982. A partida entre França e Alemanha Ocidental estava 1 a 1 — Littbarski para os germânicos e Platini, padrinho de Battiston, para os franceses —, quando, aos 5min do segundo tempo, o meia Genghini se contundiu e promoveu a entrada do defensor Battiston, para atuar mais avançado. A permanência do jogador em campo não durou dez minutos.

Platini achou uma brecha na defesa alemã e lançou para Battiston. O francês invadiu a área e, na hora do arremate, foi atropelado pelo goleiro Schumacher. O alemão acertou uma joelhada no rosto do francês, que imediatamente caiu inconsciente no gramado. Os jogadores franceses nem ligaram para a não marcação do pênalti; Battiston, imóvel no chão, estava pálido. Platini não sentiu seu pulso e o frio da tragédia percorreu sua espinha.

Em sua autobiografia, "Anpfiff" (sem tradução para o português, mas algo como "Abrindo o Jogo"), o goleiro descreveu o lance: "Um goleiro não é um avião, mas eu voei na direção de Battiston com meus joelhos..." 

 Schumacher, que sequer foi advertido pela agressão, manteve-se afastado da cena, por precaução. “Os franceses estavam enfurecidos ao redor dele, e fiquei com medo da situação se agravar”, explicou o goleiro. Battiston saiu de maca direto para a ambulância. E o jogo, inacreditavelmente, seguiu como se nada tivesse acontecido, com tiro de meta para a Alemanha Ocidental.

"... As coisas teriam sido ainda pior para ele se o contato tivesse sido frontal. Eu poderia ter me virado no último momento e lhe batido na cabeça com o meu quadril. Mas não o fiz."

No hospital, os resultados dos exames apontaram uma concussão cerebral, duas vértebras quebradas e dois dentes a menos. Enquanto isso, no campo, o resultado de 1 a 1 levava a partida para a prorrogação. E que prorrogação. Em 9 minutos, a França abriu uma vantagem de dois gols, com Trésor e Giresse. Mas os alemães não se entregaram: Rummenigge e Fischer igualaram o marcador em inacreditáveis 3 a 3. Fim de prorrogação. Implantada na Copa de 74, a decisão por pênaltis, enfim, estreava em Copas.

Nas penalidades, Schumacher foi de vilão a herói. O goleiro não saiu nem na foto nas três primeiras batidas francesas, mas depois pegou as cobranças de Six e Bossis e garantiu a seleção alemã em mais uma final. Ainda em campo, um repórter francês informou a Schumacher que a gravidade do incidente com Battiston se resumia à perda de dois dentes. O goleiro se disse aliviado e se comprometeu a pagar o tratamento odontológico ao jogador. A atitude, no entanto, não foi capaz de transformar o “Monstro de Sevilla” — como os franceses passaram a chamá-lo — em “Fada dos Dentes”.

O goleiro alemão Harald Schumacher defende o pênalti de Maxime Bossis na série alternada de pênaltis.

 A final da Copa do Mundo de 1982 reuniu dois bicampeões mundiais: a Alemanha Ocidental (1954 e 74) e a Itália (1934 e 38), que havia eliminado a Polônia nas semifinais (2 a 0), aproveitando a excelente fase de Paolo Rossi — autor dos dois gols. A única certeza antes da partida no Estádio Santiago Bernabéu, em Madrid, era que o Brasil teria companhia no seleto grupo de tricampeões.

Rossi fez a diferença na segunda partida entre italianos e poloneses na Copa. Na reta final da competição, Paolo Rossi disparou rumo à artilharia do torneio. Nem mesmo a imprensa italiana tinha como criticá-lo mais.

Com a arbitragem brasileira de Arnaldo Cezar Coelho — o primeiro juiz não europeu em uma final de Mundial —, o jogo começou duro e truncado, mostrando aos mais desavisados que se tratava mesmo de uma partida entre seleções da Europa. A sorte parecia estar do lado de Schumacher, quando Cabrini cobrou para fora o pênalti sofrido por Conti, aos 25min. Porém, na segunda etapa, a Itália passeou em campo e não deu a menor chance para os alemães.

Aos 12min, os italianos bateram rapidamente uma falta na intermediária e, no cruzamento de Gentile, Paolo Rossi escorou de cabeça para o fundo do gol de Schumacher. Era o sexto gol do “Bambino d’Oro”, que ultrapassava o alemão Rummenigge e assumia a artilharia isolada do torneio — deixando boquiaberta a imprensa italiana.

O sexto gol de Paolo Rossi em três partidas foram o suficiente para ele ser o artilheiro da Copa. A "Maldição dos 6 Gols", que começou em 78 com Mario Kempes, só foi quebrada em  2002, por Ronaldo (8 gols).

A Azzurra continuou envolvendo o time germânico, chegando a lembrar por alto o "futebol-arte" do Brasil, de toques rápidos e esnobes. Numa das boas tramas italianas no ataque, aos 44min, Tardelli acertou um chute indefensável que deixou Schumacher estático: 2 a 0. E quando Altobelli recebeu a bola na marca do pênalti e marcou o terceiro com tranquilidade, a nove minutos do fim, outra certeza se fez presente: depois de 44 anos, a Itália era tri.

Aos 38min, Breitner fez o gol que a honra alemã esperava — o terceiro jogador a marcar em duas finais de Copas, ao lado dos brasileiros Pelé e Vavá. Mas não havia nada de nobre em perder mais uma vez para a Itália: o quarto confronto em Copas entre elas sem vitória da Alemanha Ocidental.

A comemoração de Tardelli foi, provavelmente, uma das mais eufóricas em finais de Copa. 

Enquanto o capitão Zoff, no auge de seus 40 anos, levantava o troféu como o mais velho campeão mundial, o outro goleiro da decisão, o alemão Schumacher, observava de longe o que poderia ter sido a sua glória. Entretanto, o fantasma da voadora em Battiston ainda o atormentava.

Decidido a limpar a sua barra, Schumacher viajou até Metz, na França, para se encontrar com Battiston, que já estava recuperado. Sob os olhares de dezenas de jornalistas, o goleiro, arrependido, admitiu seu erro e foi perdoado pelo colega de profissão. O aperto de mão selou uma amizade nascida na raiva e na violência. No dia seguinte, Schumacher viajou para a pequena Pierrevillers como convidado de honra do noivo.

Honra que só existe nos homens que assumem seus erros.

Harald Schumacher e Patrick Battiston selaram a paz um dia antes do francês se casar. E foram felizes para sempre.