sábado, 5 de abril de 2014

1966 | A Taça de Babel

Para ler o texto anterior, "Rei Morto, Rei Posto", clique aqui.


De acordo com o Antigo Testamento, a Torre de Babel foi uma das construções mais ambiciosas do homem. Erguida na Babilônia pelos descendentes de Noé, a ideia era fazê-la tão alta que alcançasse o céu. Tal soberba provocou a ira de Deus. Para castigar os homens, o Criador confundiu-lhes as línguas e causou uma ventania que derrubou a torre. Sem se entenderem, os babilônios interromperam a reconstrução e se espalharam por toda a Terra. A partir de então, “Babel” passou a ser sinônimo de confusão.

Inspirada no templo de Marduk — Babel, em hebraico —, a lenda foi criada como uma tentativa dos antepassados de explicar a diversidade de dialetos no planeta. Entretanto, existem ruínas no sul da antiga Mesopotâmia que se encaixam perfeitamente à torre descrita na Bíblia. A verdade é que, se algum dia o mundo falou um único idioma, a Copa de 66 mostrou que foi a língua da violência.

O capitão inglês Bobby Moore é observado pelo capitão argentino Rattín na entrada do gramado de Wembley. Nas quartas de final, os cavaleiros da rainha não se portaram como cavalheiros.

Os argentinos sempre foram conhecidos por sua catimba, mas, na partida das quartas de final, quem praticou o antijogo foram os ingleses. Comandados por Nobby Stiles, os anfitriões abusaram do jogo violento. Stiles usava dentes postiços na parte frontal da arcada superior e, durante as partidas, tirava a dentadura para parecer mais assustador aos adversários.

Aos 25 minutos do primeiro tempo, cansado de tanto sofrer faltas, o capitão Antonio Rattín resolveu se queixar ao árbitro alemão Rudolf Kreitlein. Os dois literalmente não falavam a mesma língua, o que levou o jogador a pedir um intérprete. Sem entender uma palavra do que o argentino dizia, Kreitlein expulsou Rattín por indisciplina.

O incidente com Rattín foi o estopim para a criação dos cartões amarelo e vermelho no futebol. 

Inconformado, Rattín demorou dez minutos para sair de campo e acabou sendo escoltado pela polícia. No caminho para os vestiários, o meia argentino fez gestos para a torcida, amassou a bandeirinha de córner e, claro, foi vaiado. “Depois sentei no tapete vermelho ao redor da tribuna da família real. Jogaram latas de cerveja em mim. E eu não gosto de cerveja inglesa”, completou Rattín.

Com um a menos, a Argentina se segurou até os 32 minutos da etapa final, quando Geoffrey Hurst cabeceou firme para dentro das redes. Após a partida, o treinador inglês chamou os argentinos de “animais”. Devido aos incidentes no jogo, a FIFA puniu a federação argentina e o meia Rattín. O árbitro Kreitlein, o meia Stiles e o técnico Ramsey não sofreram nenhuma punição.

O técnico inglês Alf Ramsey impede a troca de camisas entre seus jogadores e os “animais”. Em resposta, os argentinos chamaram os ingleses de ‘”ladrões das Ilhas Malvinas”. 

Ainda pelas quartas de final, a partida entre Alemanha Ocidental e Uruguai, disputada em Sheffield, também foi marcada pela violência. Os alemães venceram com facilidade por 4 a 0, mas não antes do árbitro inglês Jim Finney expulsar os uruguaios Troche e Héctor Silva, por revidarem as agressões — impunes — dos alemães. A Celeste ainda reclamou de um pênalti não assinalado, quando o jogo estava 0 a 0. O zagueiro Schnellinger teria tirado a bola na linha do gol com a mão. Já na vitória da União Soviética sobre a Hungria, por 2 a 1, em Sunderland, não foram os jogadores que apanharam. Depois do “bicão” do zagueiro Shesternyev, a bola, maltratada, furou.

O jovem Franz Beckenbauer invade a área para marcar o segundo gol da vitória alemã sobre os uruguaios.

O jogo que mais chamou a atenção nas quartas de final não teve confusão. Teve gols — e muitos. Numa das maiores reviravoltas da história do futebol, Portugal venceu a Coreia do Norte por 5 a 3, depois de estar perdendo por 3 a 0 até os 25 minutos do primeiro tempo. O grande nome da partida foi novamente Eusébio. Em uma atuação brilhante, o craque português virou o jogo praticamente sozinho. Aos 15 minutos do segundo tempo, ele já havia marcado quatro vezes. Com a vitória, os lusos se classificaram para as semifinais em sua primeira Copa.

Eusébio marca. No intervalo, com o placar ainda em 3 a 2 para os asiáticos, o técnico luso-brasileiro Otto Glória deu uma chacoalhada na equipe. “Vocês deram cabo do Brasil e agora estão perdendo para a Coreia?”, gritou o treinador.

No entanto, no confronto que valia vaga na decisão, Portugal esteve irreconhecível diante da Inglaterra. Incomodados com a mudança do local da partida, de Liverpool para Londres, os portugueses sucumbiram à pressão de 94 mil vozes em Wembley. Bobby Charlton — um dos sobreviventes do desastre aéreo que matou boa parte do elenco do Manchester United, em 58 — marcou os dois gols ingleses, enquanto Eusébio, de pênalti, fez o gol solitário de Portugal.

O capitão português Coluna e o capitão inglês Bobby Moore: rara troca de cordialidades na segunda fase do torneio. 

Na outra semifinal, a Alemanha Ocidental despachou a União Soviética em mais uma batalha marcada pela brutalidade. De tanto apanhar, o atacante soviético Chislenko ficou mancando em campo até os 18 minutos do segundo tempo, quando chutou o alemão Held e foi expulso. Haller e Beckenbauer marcaram para os alemães. Porkuyan, com hematomas na canela, fez para os soviéticos.

Beckenbauer marca contra a União Soviética. Aos 21 anos, já era eleito um dos melhores de uma Copa do Mundo. Mas teria que esperar oito anos para comemorar um título mundial.

Agora, só a Alemanha Ocidental separava a Inglaterra do título inédito. A partida final contou com um torcedor inesperado: o pugilista norte-americano Cassius Clay, que ainda não se chamava Muhammad Ali. O lutador estava no país para defender o título mundial dos pesos-pesados, na semana seguinte, e aproveitou para assistir à grande decisão, em Wembley.

Com a complacência dos árbitros europeus na Copa, que ficou conhecida como “Mundial da Violência”, a presença do boxeador no estádio só podia ser uma estratégia da FIFA para intimidar ingleses e alemães dentro de campo.

Mal sabiam que a babel maior estava guardada para a finalíssima.

Eusébio, de Portugal, cobra pênalti contra Yashin, da União Soviética. Na disputa do terceiro lugar, o “Pantera Negra” levou a melhor sobre o “Aranha Negra”. Portugal venceu por 2 a 1.