quinta-feira, 22 de maio de 2014

1990 | Camarões à Milanesa

Para acessar o texto anterior, "1986 | O Gênio Indomável", clique aqui.


Era manhã de 11 de junho de 1889. Rafaelle Esposito estava um tanto nervoso. Uma ocasião assim, tão especial, jamais passara por suas mãos. E justamente elas, exímias na arte do preparo de iguarias, seriam as responsáveis por agradar Sua Majestade. Isso mesmo: a própria rainha consorte do Reino da Itália, Margarida de Sabóia, apreciaria a culinária mais falada na região de Nápoles: a pizza.

O pizzaiolo teria poucas horas para trabalhar. Naquela noite, ele visitaria o Palácio Real de Capodimonte. Trancado em seu estabelecimento, Rafaelle preparou suas melhores receitas e, sempre atualizado nos assuntos do reino, pensou em uma nova que simbolizasse a recém-unificação da Itália. Não deu outra: a pizza com as cores da bandeira italiana ­— branco (do queijo), vermelho (do tomate) e verde (do manjericão) — foi a preferida. Nascia um dos mais tradicionais sabores de pizza: a margherita, em clara homenagem ao bom gosto da rainha.

De lá para cá a culinária italiana evoluiu, ganhou a influência do ‘Novo Mundo’ e desenvolveu outros grandes sucessos: a alcachofra de Roma, a trufa da Úmbria, a lasanha de Bolonha e o presunto de Parma, entre outros. Mas foi em Milão, em 8 de junho de 1990, que o planeta conheceu um dos mais surpreendentes e saborosos pratos: Camarões à milanesa, que se tornaram indigestos para os argentinos.

Placa comemorativa do centenário da pizza margherita, criada por Esposito, no Restaurante Brandi. Uma das primeiras ideias para as pizzas da rainha era fazer a massa em forma de bota (mapa da Itália), abortada por sugerir certo dissabor.

A abertura da Copa do Mundo de 1990, entre Argentina e Camarões, no estádio Giuseppe Meazza — ou San Siro, depende para que time de Milão seja a torcida —, foi com certeza umas das mais emblemáticas partidas inaugurais da competição: pela emoção, pelo placar e até pelo pontapé inicial, com os mesmos jogadores que encerraram a Copa de 86. Entretanto, nem Maradona, nem Burruchaga estavam à altura do futebol de quatro anos antes. E, do outro lado, havia um grande e desconhecido adversário.

Comandados pelo soviético Valery Nepomnyashchy, os africanos mesclavam bom futebol e ousadia, onde o toque de bola e a velocidade contrastavam com as faltas abusivas. Kana-Biyik e Massing, peças importantes no esquema do treinador, foram expulsos no segundo tempo em lances com Caniggia. Na primeira expulsão, o atacante argentino tropeçou nas próprias pernas e garantiu as vaias ao árbitro Michel Vautrot; na segunda, Massing, que anulou Maradona, praticamente dividiu Caniggia ao meio.

Aos 16min da etapa complementar, o que ninguém esperava aconteceu. Em uma cobrança de falta, a bola voou para a área argentina e encontrou o atacante Omam-Biyik, irmão de Kana-Biyik, no terceiro andar. A cabeceada saiu fraca, mas o goleiro Pumpido não segurou. Camarões fez 1 a 0 com um frango, e a zebra passeou pelas televisões brasileiras.

O voo de Omam-Biyik. A exemplo do que aconteceu com Marrocos em 86, a campanha surpreendente de Camarões em 90 notabilizou o futebol do continente no cenário futebolístico. "Sim, nós existimos", diziam os africanos no mais puro silêncio.

 Na segunda rodada do Grupo B, o mundo foi apresentado de fato a Roger Milla, de 38 anos. Na vitória diante da Romênia, em Bari, por 2 a 1, o "vovô artilheiro" fez os dois gols camaroneses e se tornou o jogador mais velho a marcar em Copas do Mundo — recorde que seria quebrado por ele mesmo quatro anos depois. A terceira partida, também em Bari, contra a União Soviética, foi um hiato na campanha de Camarões. A derrota do time de Nepomnyashchy para seu país de origem foi vexaminosa. Porém, mesmo sofrendo uma goleada (4 a 0), a equipe se classificou em primeiro lugar em um grupo que tinha Argentina, Romênia e União Soviética. A essa altura do campeonato, Camarões já era o segundo time de todos os torcedores.

Uruguai e Espanha não saíram do zero na estreia em Údine. O time de Francescoli só conseguiu a classificação graças a um gol no último minuto contra a Coreia do Sul, na rodada final do Grupo E. A Espanha, de Míchel, ficou em primeiro, a Bélgica em segundo e o Uruguai em terceiro.

A Copa da Itália apresentou um nível técnico muito ruim em relação aos belos espetáculos dos dois Mundiais anteriores. A prova disso foi a média de gols: pífios 2,21 por partida, a pior de toda a história do torneio. O culpado foi facilmente identificado, e respondia pelo nome de "Grupo F". Das seis partidas na chave, cinco terminaram empatadas, duas delas sem gols. A mediocridade era tanta que foi preciso um sorteio para definir a segunda posição do grupo.

A Holanda estreou contra o Egito, em Palermo, como uma das favoritas ao título. Campeã da Euro 88, a Laranja tinha um ataque poderosíssimo, com Gullit e van Basten. Este, no entanto, se preparava para sua terceira cirurgia no tornozelo e não estava em totais condições de jogo. A presente ausência de van Basten na equipe era um fator de desânimo para o mundo do futebol, que guardava na memória o gol de sem-pulo na final da Euro, contra os soviéticos.

"O Egito é um país pequeno e muita gente se espanta de eles conseguirem jogar futebol. É claro que jogam. Se você der espaço a eles, vão jogar mesmo." A crítica de Johan Cruyff ao desafeto Leo Benhakker, técnico da seleção, era resultado do terrível empate por 1 a 1 da campeã europeia contra os egípcios.

Depois de empatar com Irlanda (1 a 1) e Holanda (0 a 0), a Inglaterra de Gascoigne venceu o Egito por 1 a 0, na rodada decisiva. Os britânicos foram os únicos a vencer uma partida dentro do Grupo F de 1990.

Na última rodada, Holanda e Irlanda não só empataram por 1 a 1 como também se igualaram em todos os critérios de desempate. O sorteio foi cruel com os holandeses: em terceiro lugar no grupo, teriam que enfrentar a Alemanha Ocidental nas oitavas — um castigo para o mau futebol apresentado. Os irlandeses, com a média de idade mais alta da Copa (28,9), ficaram em segundo.

Gullit, em raro momento de felicidade na Copa, fez o gol holandês contra a Irlanda. O camisa 10 não foi nem sombra do jogador que encantou o mundo na Euro 88.

As oitavas de final começaram com duas boas surpresas: Camarões x Colômbia. Depois de 90 minutos de muitas oportunidades e nenhum gol,  a vaga acabou sendo decidida na prorrogação. Foi entao que brilhou a estrela de Roger Milla, autor de dois gols. No primeiro, mostrou habilidade ao dominar entre os zagueiros colombianos; no segundo, mostrou oportunismo ao roubar a bola do espalhafatoso goleiro Higuita. A Colômbia diminuiu em um belo gol de Redín — passe preciso de Valderrama —, mas o dia era de Camarões na terra da pizza.

O folclórico goleiro René Higuita, da Colômbia, persegue o ladrão Roger Milla, de Camarões. Na comemoração, o atacante camaronês imitou o brasileiro Careca na bandeirinha de escanteio, que ensaiava passos de lambada após seus gols.

Os leões — ou camarões ou zebras — pareciam indomáveis. Nas quartas de final, contra os ingleses, travaram a melhor de todas as batalhas da Copa de 90. O English Team saiu na frente com uma cabeceada de Platt, aos 25min, especialista no assunto, que já havia marcado dessa forma na vitória contra a Bélgica (1 a 0), nas oitavas. Camarões empatou aos 16min da etapa complementar, depois que Milla foi derrubado na área por Gascoigne: Kundé bateu com categoria no alto, sem chances para Shilton.

A Inglaterra se lançou ao ataque a fim de espantar a zebra, mas acabou chamando Camarões ainda mais para o seu campo. Com a entrada do veloz Ekéké, os africanos aceleraram a partida e, não demorou muito, viraram o marcador. Aos 20min, Ekéké recebeu passe açucarado de Milla e, na saída de Shilton, tocou com classe por cima. Lambada, malabarismos e outras danças típicas se embaralharam na festa do gol.

As comemorações camaronesas eram o espelho da irreverência do time em campo. Um bom exemplo é Omam-Biyik, autor do gol contra a Argentina, que tentou fazer um gol de calcanhar no experiente Shilton.

O show de Camarões parou nos pés de Gary Lineker, artilheiro da Copa de 86, e que só havia marcado na estreia, diante da Irlanda. A 7min do fim, a imprudência de Massing foi bem observada pelo árbitro, que assinalou pênalti em cima de Lineker. O camisa 10 inglês cobrou com perfeição e levou a decisão para o tempo extra.

As pernas que correram por 90 minutos cansaram nos primeiros 15 minutos de prorrogação. Os britânicos, mais objetivos, saíram em rápido contra-ataque com Gascoigne. O meia lançou Lineker, que se livrou da marcação, entrou na área e foi atingido novamente por Massing. O mexicano Edgardo Codesal correu pela terceira vez na partida até a marca da cal, com razão absoluta, e garantiu sua presença na final da Copa. E Lineker, a Inglaterra nas semifinais: 3 a 2.

Para alguns, Camarões havia ido longe demais. Mas quando se joga com alegria, o futebol não mede distâncias, apenas agradece. Sem Camarões, a Copa perdera seu sorriso e ficara mais sisuda.

 O primeiro pênalti em Lineker. Camarões fez história e se tornou a primeira seleção africana a alcançar as quartas de final. Senegal, em 2002, e Gana, em 2010, repetiriam o feito, mas cometeriam o mesmo erro dos camaroneses: umas pitadas a mais de irresponsabilidade.