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Era manhã de 11 de junho de 1889.
Rafaelle Esposito estava um tanto nervoso. Uma ocasião assim, tão especial,
jamais passara por suas mãos. E justamente elas, exímias na arte do preparo de
iguarias, seriam as responsáveis por agradar Sua Majestade. Isso mesmo: a
própria rainha consorte do Reino da Itália, Margarida de Sabóia, apreciaria a
culinária mais falada na região de Nápoles: a pizza.
O pizzaiolo teria poucas horas para trabalhar. Naquela noite, ele visitaria o Palácio Real de Capodimonte. Trancado
em seu estabelecimento, Rafaelle preparou suas melhores receitas e, sempre
atualizado nos assuntos do reino, pensou em uma nova que simbolizasse a
recém-unificação da Itália. Não deu outra: a pizza com as cores da bandeira
italiana — branco (do queijo), vermelho (do tomate) e verde (do manjericão) —
foi a preferida. Nascia um dos mais tradicionais sabores de pizza: a
margherita, em clara homenagem ao bom gosto da rainha.
De lá para cá a culinária italiana
evoluiu, ganhou a influência do ‘Novo Mundo’ e desenvolveu outros grandes
sucessos: a alcachofra de Roma, a trufa da Úmbria, a lasanha de Bolonha e o
presunto de Parma, entre outros. Mas foi em Milão, em 8 de junho de 1990, que o
planeta conheceu um dos mais surpreendentes e saborosos pratos: Camarões à
milanesa, que se tornaram indigestos para os argentinos.
A abertura da Copa do Mundo de 1990,
entre Argentina e Camarões, no estádio Giuseppe Meazza — ou San Siro, depende
para que time de Milão seja a torcida —, foi com certeza umas das mais
emblemáticas partidas inaugurais da competição: pela emoção, pelo placar e até
pelo pontapé inicial, com os mesmos jogadores que encerraram a Copa de 86.
Entretanto, nem Maradona, nem Burruchaga estavam à altura do futebol de quatro
anos antes. E, do outro lado, havia um grande e desconhecido adversário.
Comandados pelo soviético Valery
Nepomnyashchy, os africanos mesclavam bom futebol e ousadia, onde o toque de
bola e a velocidade contrastavam com as faltas abusivas. Kana-Biyik e Massing,
peças importantes no esquema do treinador, foram expulsos no segundo tempo em
lances com Caniggia. Na primeira expulsão, o atacante argentino tropeçou nas
próprias pernas e garantiu as vaias ao árbitro Michel Vautrot; na segunda,
Massing, que anulou Maradona, praticamente dividiu Caniggia ao meio.
Aos 16min da etapa complementar, o
que ninguém esperava aconteceu. Em uma cobrança de falta, a bola voou para a
área argentina e encontrou o atacante Omam-Biyik, irmão de Kana-Biyik, no
terceiro andar. A cabeceada saiu fraca, mas o goleiro Pumpido não segurou. Camarões
fez 1 a 0 com um frango, e a zebra passeou pelas televisões brasileiras.
Na segunda rodada do Grupo B, o mundo
foi apresentado de fato a Roger Milla, de 38 anos. Na vitória diante da Romênia, em Bari,
por 2 a 1, o "vovô artilheiro" fez os dois gols camaroneses e se tornou o
jogador mais velho a marcar em Copas do Mundo — recorde que seria quebrado por
ele mesmo quatro anos depois. A terceira partida, também em Bari, contra a
União Soviética, foi um hiato na campanha de Camarões. A derrota do time de
Nepomnyashchy para seu país de origem foi vexaminosa. Porém, mesmo sofrendo uma
goleada (4 a 0), a equipe se classificou em primeiro lugar em um grupo que tinha Argentina, Romênia e União Soviética. A essa altura do campeonato, Camarões já
era o segundo time de todos os torcedores.
A Copa da Itália apresentou um nível
técnico muito ruim em relação aos belos espetáculos dos dois Mundiais
anteriores. A prova disso foi a média de gols: pífios 2,21 por partida, a pior
de toda a história do torneio. O culpado foi facilmente identificado, e
respondia pelo nome de "Grupo F". Das seis partidas na chave, cinco
terminaram empatadas, duas delas sem gols. A mediocridade era tanta que foi
preciso um sorteio para definir a segunda posição do grupo.
A Holanda estreou contra o Egito, em
Palermo, como uma das favoritas ao título. Campeã da Euro 88, a Laranja tinha um ataque
poderosíssimo, com Gullit e van Basten. Este, no entanto, se preparava para sua terceira cirurgia no tornozelo e não estava em totais condições de
jogo. A presente ausência de van Basten na equipe era um fator de desânimo para
o mundo do futebol, que guardava na memória o gol de sem-pulo na final da
Euro, contra os soviéticos.
"O Egito é um país pequeno e
muita gente se espanta de eles conseguirem jogar futebol. É claro que jogam. Se
você der espaço a eles, vão jogar mesmo." A crítica de Johan Cruyff ao
desafeto Leo Benhakker, técnico da seleção, era resultado do terrível empate
por 1 a 1 da campeã europeia contra os egípcios.
Na última rodada, Holanda e Irlanda
não só empataram por 1 a 1 como também se igualaram em todos os critérios de
desempate. O sorteio foi cruel com os holandeses: em terceiro lugar no grupo,
teriam que enfrentar a Alemanha Ocidental nas oitavas — um castigo para o mau
futebol apresentado. Os irlandeses, com a média de idade mais alta da Copa
(28,9), ficaram em segundo.
Gullit, em raro momento de felicidade na Copa, fez o gol holandês contra a Irlanda. O camisa 10 não foi nem sombra do jogador que encantou o mundo na Euro 88. |
As oitavas de final começaram com
duas boas surpresas: Camarões x Colômbia. Depois de 90 minutos de muitas oportunidades e nenhum gol, a vaga acabou sendo decidida na prorrogação. Foi entao que brilhou a estrela de Roger Milla, autor de dois gols. No primeiro, mostrou habilidade ao dominar entre os zagueiros
colombianos; no segundo, mostrou oportunismo ao roubar a bola do espalhafatoso goleiro
Higuita. A Colômbia diminuiu em um belo gol de Redín — passe preciso de
Valderrama —, mas o dia era de Camarões na terra da pizza.
Os leões — ou camarões ou zebras —
pareciam indomáveis. Nas quartas de final, contra os ingleses, travaram a
melhor de todas as batalhas da Copa de 90. O English Team saiu na frente com
uma cabeceada de Platt, aos 25min, especialista no assunto, que já havia
marcado dessa forma na vitória contra a Bélgica (1 a 0), nas oitavas. Camarões
empatou aos 16min da etapa complementar, depois que Milla foi derrubado na área
por Gascoigne: Kundé bateu com categoria no alto, sem chances para Shilton.
A Inglaterra se lançou ao ataque a
fim de espantar a zebra, mas acabou chamando Camarões ainda mais para o seu
campo. Com a entrada do veloz Ekéké, os africanos aceleraram a partida e, não
demorou muito, viraram o marcador. Aos 20min, Ekéké recebeu passe açucarado de
Milla e, na saída de Shilton, tocou com classe por cima. Lambada, malabarismos
e outras danças típicas se embaralharam na festa do gol.
As comemorações camaronesas eram o espelho da irreverência do time em campo. Um bom exemplo é Omam-Biyik, autor do gol contra a Argentina, que tentou fazer um gol de calcanhar no experiente Shilton. |
O show de Camarões parou nos pés de
Gary Lineker, artilheiro da Copa de 86, e que só havia marcado na estreia,
diante da Irlanda. A 7min do fim, a imprudência de Massing foi bem observada
pelo árbitro, que assinalou pênalti em cima de Lineker. O camisa 10 inglês cobrou
com perfeição e levou a decisão para o tempo extra.
As pernas que correram por 90 minutos
cansaram nos primeiros 15 minutos de prorrogação. Os britânicos, mais
objetivos, saíram em rápido contra-ataque com Gascoigne. O meia lançou Lineker,
que se livrou da marcação, entrou na área e foi atingido novamente por Massing.
O mexicano Edgardo Codesal correu pela terceira vez na partida até a marca da
cal, com razão absoluta, e garantiu sua presença na final da Copa. E Lineker, a Inglaterra nas semifinais: 3 a 2.
Para alguns, Camarões havia ido longe
demais. Mas quando se joga com alegria, o futebol não mede distâncias, apenas
agradece. Sem Camarões, a Copa perdera seu sorriso e ficara mais sisuda.