segunda-feira, 31 de março de 2014

1962 | O Marciano das Pernas Tortas

Para ver como o Brasil mudou "Da Água para o Vinho" no texto anterior, clique aqui.


Seis centímetros afastavam a perna direita da perfeição. Além de curta, era flexionada para dentro. A esquerda, por sua vez, tendia para fora, o que fazia das pernas duas incoerências anatômicas. O peso do corpo se apoiava em joelhos malformados e, para piorar, seu comandante era destro. Difícil imaginar que alguém assim pudesse andar. E não andava mesmo. Corria, driblava e, com as pernas tortas, entortava. Realmente, aquilo não era humano.

De comum, Manuel Francisco dos Santos só tinha o nome. Criado com 15 irmãos na extrema pobreza no interior do Rio — um fim de mundo chamado Pau Grande —, perdeu o pai de cirrose, uma irmã de barriga d’água e outra ao cair de um caminhão. Da miséria e da tragédia nasceu a lenda.

Desajeitado, aos 14 anos começou no futebol, o que já era um milagre. Aos 19, casado com Nair, de 16, chegou ao Botafogo. Iletrado, deu meia dúzia de dribles na “enciclopédia do futebol”, no primeiro teste, e foi contratado — a pedido do próprio Nilton Santos.

Seu talento manifesto o levou à Seleção. O jeito irreverente de jogar não mudou. Tornava a driblar o mesmo jogador que acabara de fintar pelo simples prazer da brincadeira. Rindo, fazia jogadas desconcertantes, cruzamentos precisos e gols exuberantes. Era a alegria do povo.

Voltou da Suécia nadando em dinheiro, e pagou, em dólar, as contas atrasadas dos moradores de Pau Grande. Porém, se afundou nas próprias dívidas. Enganara tantos joões-ninguém nos gramados, que acabou tapeado fora deles. Foi quando começou a deixar-se driblar por seu maior adversário: a cachaça.

Entre glórias e humilhações, criatividade e ingenuidade, chegou à Copa de 62 mais experiente e menos irresponsável — dentro de campo. Jogou por ele, por Pelé e pelo Brasil. Virou mito.

Clima descontraído na concentração do Brasil, em Viña del Mar.

Em 13 de junho de 1962, Brasil e Chile fizeram a partida mais esperada do Mundial. Inicialmente marcado para o Sausalito, em Viña del Mar, o duelo foi deslocado para o Estádio Nacional, em Santiago, visto que tinha maior capacidade. Estavam certos: foi o maior público da história do estádio, chegando a 76.564 espectadores.

Os anfitriões haviam surpreendido os soviéticos, então campeões europeus, nas quartas de final, e prometiam comemorar a passagem para a decisão tomando um “autêntico café brasileiro”. A rivalidade era tamanha que, para evitar possíveis hostilidades, a Seleção Brasileira viajou de trem para a capital, em vez de ônibus. Desconfiada, a comissão técnica saiu na manhã da partida para comprar pão, queijo, salame e mortadela. Com medo de um “envenenamento” da comida no hotel, o almoço foi à base de sanduíches.

Nas arquibancadas do estádio Nacional, uma presença ilustre refletia um brilho intenso dentro de campo: Elza Soares, a quem foi prometida a Taça Jules Rimet. Apenas o amor era capaz de explicar a alma endemoniada que deitou, rolou e fez o diabo naquele dia.

Os chilenos só conseguiam parar os brasileiros na base do pontapé.

O Brasil abriu o placar logo a 9 minutos do primeiro tempo, numa jogada que começou bisonha e terminou em golaço. Amarildo furou a bicicleta, Vavá errou o domínio e a bola sobrou para o imprevisível ponta do Botafogo chutar, de canhota, no ângulo do goleiro Escuti: 1 a 0.

Melhor em campo, a Seleção chegou ao segundo gol aos 32 minutos. Zagallo cobrou o escanteio e o baixinho da camisa sete, do alto de seus 1,76m, subiu entre três defensores para cabecear. Brasil 2 a 0. Dois dele.

Toro, de falta, descontou para os donos da casa ainda na primeira etapa, mas o gênio arqueado acabou com as esperanças chilenas. Aos 2 minutos do segundo tempo, bateu o escanteio, com veneno, na cabeça de Vavá: 3 a 1.

Vavá comemora o quarto gol brasileiro: o terceiro dele na Copa do Mundo.

O Chile não desistiu da luta, e conseguiu seu segundo gol, aos 16 minutos, num pênalti bem cobrado por Leonel Sánchez. Contudo, aos 33 minutos veio o nocaute brasileiro. Zagallo cruzou da esquerda e Vavá, de novo, enfiou a cabeça na bola: Brasil 4 a 2.

Já no final da partida, o “anjo” das pernas tortas mostrou o quanto a sua inocência era proporcional a sua irresponsabilidade. Fora do lance de bola, deu um “pontapezinho de amizade” — conforme ele mesmo considerou — em Eladio Rojas, que valorizou a agressão como só os chilenos sabem fazer. O árbitro peruano Arturo Yamasaki consultou o seu assistente e não pensou duas vezes: expulsou o atacante.

Didi: "Eu fazia um lançamento e tinha vontade de rir. Ele passava e deixava os homens de bunda no chão".

No dia seguinte, a capa do jornal “El Mercurio” perguntava ao craque brasileiro “de que planeta vienes”. Dado o nome da publicação, a resposta parecia óbvia: Marte. Mas mais curioso que a procedência do jogador era a sua presença entre os titulares na final da Copa, contra a Tchecoslováquia, visto que deveria cumprir suspensão automática por ter sido expulso nas semifinais.

No tribunal da FIFA, o árbitro Yamasaki declarou não ter visto a agressão, e que as informações do bandeirinha, o uruguaio Esteban Marino, é que determinaram a expulsão do atleta. Convocado pela entidade, Marino tanto não apareceu para depor, como desapareceu. A versão oficial era que ele já teria retornado ao seu país. Entretanto, nos bastidores diziam que ele teria recebido uma bela soma em dinheiro para sumir do mapa. O mais provável é que tenha sido abduzido.

Sem provas, o réu foi inocentado.

Jogadores das duas seleções desfilam com a bandeira do Chile após a partida:
rivalidade só durante os 90 minutos.


Para ir à final da Copa de 62, clique no texto "A Alegria do Povo".

sábado, 29 de março de 2014

1962 | Da Água para o Vinho

Para ler o texto anterior, "Aos Olhos dos Andes", clique aqui.


Jesus — sempre muito sociável — e seus discípulos foram convidados para uma festa de casamento em Caná, na Galileia. A certa altura das bodas, o vinho acabou. À época, ficar sem bebida durante uma festa era visto como um escândalo, além de uma desonra aos noivos.

Cristo, então, mandou encher de água todos os jarros de pedra vazios. Depois de cheios até a borda, Jesus pediu que servissem a água aos convidados. A reação ao provarem o líquido foi de espanto: a água havia se transformado em vinho. Passado o susto, a festa continuou, com muita bebida, e os noivos foram felizes para sempre.

Chamada de “Bodas de Caná”, a passagem bíblica não traz explicações científicas a respeito do processo — o que seria interessante. No entanto, deu origem a uma expressão popular muito conhecida. “Mudar da água para o vinho” indica uma mudança radical de situação, e foi exatamente o que aconteceu com a Seleção em 62. 

Com Puskás em fim de carreira e sem Di Stéfano, contundido, a Espanha decepcionou outra vez.

Depois do empate sem gols diante da Tchecoslováquia e a perda de Pelé, a Seleção Brasileira foi tomada por uma onda de desconfiança. Mesmo jogando pelo empate contra a Espanha, na última rodada do Grupo 3, a ausência do camisa dez era preocupante. A seleção de Aymoré entrou em campo, no Sausalito, em Viña del Mar, com Amarildo no lugar de Pelé. O Brasil ainda tinha Didi, Vavá, Zagallo e Garrincha. Só não contava com o árbitro chileno Sergio Bustamantes.

Com vários craques do Real Madrid no elenco — entre eles Ferenc Puskás, que defendeu a Hungria em 54 —, a Espanha precisava vencer para não se juntar à Itália, Argentina e ao Uruguai, eliminados ainda na primeira fase. Aos 35min, tratou logo de dar as cartas. Adelardo chutou da entrada da área e fez Espanha 1 a 0.

Descontrolada, a Seleção Brasileira se abriu para os contra-ataques espanhóis. Em um deles, já no segundo tempo, Nilton Santos fez falta em Collar dentro da área e, malandro, deu dois passos à frente. A arbitragem não deu o pênalti. Na cobrança da falta, após cruzamento, Peiró acertou uma linda bicicleta, mas o árbitro persistiu no erro: alegou “jogo perigoso” e anulou o gol. Os espanhóis reclamaram muito, fazendo jus ao apelido de “Fúria”.

Faltando 20 minutos para o final, o Brasil chegou ao empate. Zagallo cruzou da linha de fundo e Amarildo completou: 1 a 1. O resultado eliminava a Espanha, que se mandou para o ataque. Com espaço, Garrincha finalmente desencantou. A quatro minutos do fim, ele passou por três marcadores e cruzou na cabeça de Amarildo: 2 a 1.

Amarildo sobe mais que todo mundo no segundo gol brasileiro contra a Espanha.

Depois da partida, Pelé, emocionado, desceu das arquibancadas e foi até o vestiário para falar com o autor dos gols da vitória. Quando chegou lá, Amarildo estava no banho. Pelé não teve dúvidas: entrou de roupa e tudo debaixo do chuveiro e abraçou o seu substituto.

Ao saber que sua contusão o tiraria da Copa, Pelé disse a Amarildo "Você está protegido por Deus".

Da água, o Brasil partiu para o vinho. A Seleção encorpou e ganhou confiança para enfrentar a Inglaterra, nas quartas de final. Velhos conhecidos, os ingleses não viram a cor da bola.

A partida chegou a ser paralisada no primeiro tempo depois que um cachorro invadiu o gramado. O cãozinho mostrou habilidade ao driblar o goleiro inglês Springett e, depois, Garrincha, com uma “ginga de corpo” de dar inveja. Por fim, o atacante Jimmy Greaves ficou de quatro para atrair o cão e agarrá-lo. A tática só deu certo com o animal — nenhum inglês foi capaz de segurar Mané Garrincha.

O primeiro cachorro foi pego. O segundo, ninguém pegou.
Depois de passear pelo gramado, ele passou por baixo do alambrado e sumiu.

O camisa sete foi às redes duas vezes — uma de cabeça e a outra de fora da área — e Vavá uma, depois de pegar o rebote na cobrança de falta de Garrincha. A vitória por 3 a 1 classificou o Brasil para encarar o Chile, nas semifinais. 

A verdade é que Mané começava a decidir a Copa quase sozinho. E ele queria botar café no vinho chileno.


Garrincha não deu a menor chance para a Inglaterra, de Bobby Charlton.






Para ler a história de Garrincha, "O Marciano das Pernas Tortas", clique aqui.



sexta-feira, 28 de março de 2014

1962 | Aos Olhos dos Andes

Para ler o texto anterior da Copa de 62, "Fios de Esperança", clique aqui.


Nascida no período Terciário há inumeráveis milhões de anos, a Cordilheira dos Andes é fruto do encontro nada amoroso entre duas placas tectônicas. Constitui a maior cadeia de montanhas do planeta, com sete mil quilômetros de extensão, indo da Venezuela até a Patagônia e atravessando seis países da América do Sul. Do alto de seus quatro mil metros de altura, em média, tem visão privilegiada de tudo o que se passa no continente. Em 1962, os Andes assistiram de camarote à Copa do Mundo, que aconteceu bem debaixo de seus pés. 

Faixa exprime o sentimento da torcida brasileira presente no Chile.

Tendo ao fundo um deslumbrante cenário de montanhas cobertas de neve, a capital chilena, Santiago, recebeu as partidas do Grupo 2, o da seleção da casa. Os jogos foram disputados no estádio Nacional, que teve sua capacidade aumentada de 45 mil para 70 mil lugares.

Depois de estrear com vitória sobre a Suíça, por 3 a 1, o Chile enfrentou a bicampeã Itália pela segunda rodada. E o que era para ser um grande confronto se tornou um dos jogos mais violentos da história das Copas.

Conhecida mais por sua catimba do que por sua técnica, a seleção chilena aproveitou a fraqueza da arbitragem para enervar os italianos. O clima começou a esquentar logo aos 12min, quando Ferrini, da Itália, foi expulso por jogo violento. Depois, a cotovelada do chileno Leonel Sánchez — filho de pugilista — no nariz do italiano Maschio deu início a uma sucessão de agressões, que culminou na expulsão de outro italiano, Mario David. As duas equipes acabaram saindo escoltadas do gramado. No jogo que ficou conhecido como “A Batalha de Santiago”, o Chile venceu por 2 a 0.

Jogadores no chão depois da troca de socos e pontapés: o Chile ganhou a luta por pontos.

A seleção chilena acabou se classificando, ao lado da Alemanha Ocidental, e a Azzurra, com sua legião de estrangeiros — entre eles Mazzola, campeão com o Brasil, em 58 —, ficou de fora. O bicampeão Uruguai e a Argentina, mesmo perto de sua torcida, também deram vexame e, assim como a Itália, foram eliminados ainda na fase de grupos.

União Soviética e Colômbia fizeram a partida mais emocionante da primeira fase. Mas o que chamou a atenção no inusitado empate de 4 a 4 não foi o placar, e sim o gol do colombiano Marcos Coll: o primeiro e único gol olímpico da história das Copas.

No primeiro duelo, um empate de 0 a 0: começava o calvário alemão de nunca vencer os italianos em Copas.

Sob o olhar frio dos Andes, o Brasil estreou contra o México, mais uma vez, em Viña del Mar, sede dos jogos do Grupo 3. Adotando a filosofia “em time que está ganhando não se mexe”, o novo técnico, Aymoré Moreira, escalou nove jogadores campeões mundiais. Entre eles Pelé, com 21 anos, o grande astro do Santos que disputaria a Libertadores depois da Copa. Mas mesmo com todo o favoritismo, a Seleção Brasileira não fez uma atuação digna de aplausos.

No primeiro tempo, o mexicano Carbajal foi o grande responsável pela anulação do ataque brasileiro. Quando a bola de Pelé finalmente passou pelo goleiro, parou na trave. Os gols só saíram na segunda etapa. Aos 11min, Zagallo aproveitou o cruzamento de Garrincha e, de peixinho, abriu o marcador. Aos 28min, foi a vez de Zagallo servir Pelé, que driblou o zagueiro Sepúlveda e fechou o placar: Brasil 2 a 0.

Vavá, Pelé e Zagallo, no chão, comemoram o primeiro gol brasileiro em terras chilenas.

Aymoré não se abateu com as críticas e manteve o mesmo time para a segunda partida, contra a Tchecoslováquia. Ao contrário da estreia, o time começou atrevido, abusando da habilidade individual para tentar furar o bloqueio defensivo dos tchecos.

Pelé era o melhor em campo e já tinha mandado uma bola na trave quando, aos 27min, recebeu de Zito, dominou no peito e arriscou o chute. Deu um grito e foi ao chão, sentindo a dor da distensão na virilha. Saiu de campo, mas acabou voltando sete minutos depois, apenas para fazer número — as substituições eram proibidas. A partida terminou 0 a 0.

A única contusão séria sofrida por Pelé em toda a sua carreira tirou o camisa 10 do restante do Mundial. Além de perder seu principal jogador, a Seleção Brasileira ainda teria que lutar contra o desânimo.

No entardecer daquele dia, quem olhasse em direção aos Andes diria que viu uma lágrima escorrer por entre as montanhas.

Acompanhado por Garrincha, Pelé sai de cena pela última vez na Copa de 62.


[  continua  ]

quinta-feira, 27 de março de 2014

1962 | Fios de Esperança

Para ler o texto anterior, "1958 | A Taça do Mundo É Nossa", clique aqui.


Numa escala de 0 a 10, chegar a 9,5 é praticamente atingir o auge. Seria realmente o máximo se estivéssemos falando de uma prova na faculdade, uma avaliação na academia ou do grau de satisfação com o SAC de uma operadora de celular. Mas os 9,5 em questão referem-se à magnitude do terremoto mais violento já registrado cientificamente na face da Terra. Ele ocorreu no dia 22 de maio de 1960, no Chile, dois anos antes da Copa do Mundo naquele país.

O “Grande Sismo do Chile” atingiu toda a região centro-sul do território chileno, com foco nas cidades de Valdivia e Concepción. Provocou a erupção de um vulcão nos Andes e um tsunami que atravessou o Pacífico até o Havaí e o Japão.

Os prejuízos foram incalculáveis. O número de vítimas chegou a 5.700. Mais de dois milhões de chilenos ficaram feridos. Três dias após o desastre, cerca de mil pessoas faleceram por doenças causadas pela sujeira e esgoto a céu aberto. Um ano depois, réplicas do primeiro abalo ainda podiam ser sentidas. A Copa de 1962, por pouco, não se realizou.

Coube a um brasileiro, naturalizado chileno, salvar o Mundial. Carlos Dittborn era presidente da Conmebol quando o país ganhou o direito de sediar o evento. As obras de infraestrutura iam de vento em popa, mas o tremor lançou incertezas sobre a capacidade do Chile em abrigar o torneio depois da tragédia.

 Dittborn pediu um voto de confiança à FIFA, que lhe deu. Sob o lema “Porque nada tenenos, lo haremos todo” (porque nada temos, faremos tudo), as obras foram concluídas em tempo recorde — o que nos faz pensar, como brasileiros, o quanto somos incompetentes. Contudo, Dittborn sofreu um ataque cardíaco a um mês da Copa e não pôde ver o resultado de seus esforços.

A cidade de Concepción devastada após o tremor: 25% da população chilena ficou desabrigada.

A Copa do Mundo de 1962 só não foi um fiasco de público graças ao time da casa. Os torcedores chilenos só se interessavam pelos jogos de sua seleção. Enquanto o Chile tinha mais de 60 mil espectadores por partida, a média das outras equipes ficou abaixo dos 10 mil. Foi o terceiro pior público em Mundiais, perdendo apenas para as Copas de 30 e 34.

O torneio marcou o fim das partidas extras para decidir vagas, em caso de empate por número de pontos. Passou-se a adotar o saldo de gols como primeiro critério de desempate, o que perdura até os dias de hoje.

Também foi a última Copa do Mundo a não ser transmitida ao vivo para a Europa, uma vez que o satélite Telstar ainda não havia sido lançado ao espaço. No Reino Unido, a BBC transmitiu os jogos ao vivo via rádio e, nos cinemas, no dia seguinte à realização das partidas. No Brasil, a torcida sofreu um pouco mais: os videoteipes chegavam de avião e eram exibidos com dois dias de atraso.

Na Praça da Sé, em São Paulo, a população acompanha, pelo rádio, partida do Brasil na Copa de 62.

Problemas com doping e naturalizações foram discutidos uma semana antes do início do Mundial, e ficou decidido que, a partir da Copa de 66, um jogador só poderia atuar por uma seleção se nunca tivesse jogado por outro país em jogos oficiais. Quanto ao uso de substâncias proibidas, a falta de uma legislação antidoping em grande parte das nações participantes — apenas a Itália possuía — impossibilitava qualquer controle.

A FIFA queria evitar casos como o do argentino Alfredo Di Stéfano, da Espanha. Além de trocar de seleção, o craque não via problemas em um jogador tomar estimulantes — o que leva a imaginar que alguns atletas poderiam ter usado substâncias para melhorar o desempenho dentro de campo durante a competição.

De certo era que o Brasil chegava à Copa sob nova condição: a de detentor do título. E para defender sua conquista, manteve a mesma base do Mundial anterior. Com Didi, Vavá, Zagallo, Pelé e Garrincha, a Seleção Brasileira tinha tudo para fazer tremer o Chile, mais uma vez.

O Quinteto de Ouro: Garrincha, Didi, Pelé, Vavá e Zagallo.



Para ler a sequência desta história, em "Aos Olhos dos Andes", clique aqui.

quarta-feira, 26 de março de 2014

1958 | A Taça do Mundo É Nossa


Quer ver como o Brasil acelerou pra cima da França na semifinal? Clique aqui.


Em 12 de outubro de 1717, às margens do Rio Itaguaçu, três pescadores da vila de Guaratinguetá tratavam do almoço do Conde de Assumar, governador da província de São Paulo. Sem muito sucesso em boa parte do tempo, as redes lançadas nas águas trouxeram uma grata surpresa no fim da tarde: uma peça, em barro cozido, com 36 cm de altura. Os pescadores ainda acharam uma cabeça, separada do resto, e logo perceberam que se tratava da imagem de uma santa. Daquele dia em diante, os peixes, sempre escassos na região, começaram a aparecer em abundância.

Do rio, a santa foi para uma casa. Da casa, para um oratório. Do oratório, para uma capela, que cresceu e virou basílica. Aparecida passou de povoado a município. E, em 16 de junho de 1930, o papa Pio XI proclamou a santa como padroeira do Brasil.

Portando um manto azul, bordado em ouro e pedrarias, símbolos da realeza da Princesa Isabel, de quem herdou a coroa, Nossa Senhora Aparecida foi, para muitos supersticiosos, fator decisivo na conquista do Brasil na Copa do Mundo de 1958.

Lance da final entre Brasil e Suécia: parece até montagem.

Na véspera da decisão contra os donos da casa, o impasse das camisas acabou forçando um sorteio para apontar quem jogaria de amarelo: e deu Suécia. Na delegação brasileira ninguém havia previsto a necessidade de um segundo uniforme, então foi preciso comprar às pressas um jogo de camisas. A dúvida estava na cor —qualquer uma, menos branca.

Supersticioso, o chefe da delegação, Paulo Machado de Carvalho, escolheu azul, alegando que a “cor do manto de Nossa Senhora Aparecida” traria sorte ao time. Os escudos foram arrancados das camisas amarelas e bordados nas novas. No dia seguinte, o Brasil entrou em campo vestindo o manto da padroeira, sob a proteção de sua coroa e com um menino prestes a ser coroado rei.

Todos os seis gols de Pelé na competição foram marcados no segundo tempo.

Com mais de 50 mil torcedores nas arquibancadas, a Suécia começou o jogo da mesma forma que o Brasil contra a União Soviética e a França: avassaladora. Logo aos 4min de jogo, Liedholm foi lançado, cortou Bellini e Orlando e bateu no canto de Gilmar. O estádio Råsunda veio abaixo: Suécia 1 a 0.

Mas o Brasil tinha Didi. O maestro carregou a bola nos braços até o meio de campo, gritando pelo caminho ‘Vamos lá, acabou a moleza, vamos encher esse gringos de gols’. 5min depois, o Brasil empatou. Garrincha cruzou da direita, Pelé não alcançou e Vavá, antecipando a zaga, empurrou para as redes: 1 a 1.

Aos 32min, novamente com Garrincha escapulindo pela direita, o Brasil chegou à virada. O ponta, endiabrado, cruzou forte e o goleiro Svensson passou lotado, deixando o gol livre para Vavá fazer seu segundo na partida. O placar parcial da decisão apontava 2 a 1 para o Brasil, e a torcida sueca, que apoiou o time desde o pontapé inicial, começava a ficar dividida.

Se o estádio estava na dúvida, aos 10min do segundo tempo ela acabou. Nilton Santos jogou a bola na área, Pelé estufou o peito, matou a redonda, deu um chapéu no zagueiro Gustavsson e, sem deixá-la cair, arrematou para o gol: 3 a 1. Não havia um torcedor no Råsunda que não estivesse aplaudindo a façanha — um dos gols mais bonitos da história das Copas.

O primeiro gol de Pelé foi literalmente de se tirar o chapéu.

13 minutos depois da pintura, foi a vez da raça assinar o gol brasileiro. Zagallo dividiu com dois suecos, ganhou e chutou, caindo, por baixo do goleiro: 4 a 1. Simonsson diminuiu a 10 minutos do fim, mas Pelé voltou a marcar, no último lance. Zagallo cruzou e o artilheiro brasileiro completou de cabeça, meio sem jeito, o suficiente para encobrir o arqueiro Svensson. A Seleção Brasileira repetia o placar das semifinais, 5 a 2, e conquistava a Taça do Mundo — como era chamada à época, no Brasil.

Pelé marca o quinto e desaba no gramado: merecido descanso.

A torcida sueca se rendeu ao talento da Seleção Brasileira e aplaudiu de pé os novos campeões mundiais. Em retribuição, os jogadores deram a volta olímpica com a bandeira da Suécia. Pelé, o jogador mais jovem a conquistar a Copa do Mundo, chorava copiosamente.

A volta olímpica de agradecimento.


Pelé nos braços de Gilmar e do povo.

Buscando um melhor ângulo, a legião de repórteres pediu para o capitão Bellini
levantar o troféu para o alto: o gesto passou a ser repetido por todos os campeões.

O Rei Gustavo desceu da tribuna de honra para cumprimentar pessoalmente os campeões. Porém, diante do garoto que acabara de encantar o mundo, demorou-se um pouco mais. Sorridente, estendeu a mão ao jogador, sem imaginar que, muito em breve, aquele seria lembrado como um encontro de reis.


O rei da Suécia e o futuro rei do futebol.

O final feliz daquela história de amor — entre o Brasil e a Copa do Mundo — estava apenas começando.


A taça do mundo é nossa / Com brasileiro não há quem possa /
Êh eta esquadrão de ouro / é bom no samba, é bom no couro 


Em pé: Djalma Santos, Zito, Bellini, Nilton Santos, Orlando e Gilmar;
sentados: Garrincha, Didi, Pelé, Vavá e Zagallo.

Pelé: o filho do Brasil com a Copa do Mundo.


A Copa de 62 começa clicando aqui.

terça-feira, 25 de março de 2014

1958 | Acelera, Brasil!

A história de Pelé está no texto anterior, "1958 | Prazer, Pelé". Acesse aqui.


A Simca — abreviatura de Société Industrielle Mécanique et Carrosserie Automobile — foi uma montadora francesa, que chegou ao Brasil em maio de 1958. Por motivos operacionais e logísticos, mudou sua sede de Belo Horizonte para São Paulo. A empresa foi pioneira na fabricação de carros de luxo — o famoso rabo de peixe, muito cobiçado — e a primeira a fabricar motores V8 no País. Teve seu auge em 1964. Comprada pela Chrysler, três anos depois, a empresa deixou de existir.

Em quase dez anos de permanência no Brasil, a Simca nunca foi tão comentada como em 24 de junho de 1958. Naquele dia, a Seleção Brasileira, pela primeira vez na Copa, pisou no estádio Råsunda, em Estocolmo, para enfrentar a França, pelas semifinais da competição. Havia uma grande expectativa em torno do confronto, uma vez que de um lado estava o artilheiro do torneio, Just Fontaine (8 gols) e do outro estava Pelé, o menino que começava a ganhar os holofotes.

A França chegou pela primeira vez entre as quatro melhores seleções,
feito que não havia conseguido nem quando organizou o torneio, em 1938. 

 A exemplo do que havia acontecido contra a União Soviética, na fase de grupos, o Brasil começou arrasador. Logo a 2min, Garrincha ganhou a bola de presente do capitão francês Jonquet e deixou Vavá na cara do gol: 1 a 0. Mas ao contrário dos soviéticos, os franceses se reergueram pouco depois. Aos 8min, Kopa enfiou a bola para Fontaine, que driblou Gilmar com maestria e marcou seu nono tento na Copa do Mundo — era o primeiro gol que o Brasil sofria na competição.

Fontaine dribla Gilmar e empata: o artilheiro ainda faria mais quatro na decisão de terceiro lugar.

Meia hora depois do empate azul, Didi acertou um chute espetacular no ângulo do goleiro Abbes, que só não pôde aplaudir o “pombo sem asa” porque estava voando — em vão — até a bola. Brasil 2 a 1.

Ainda no primeiro tempo, Garrincha teve um gol anulado e o capitão Jonquet, a perna fraturada em uma dividida com Vavá. Como na época ainda não existiam substituições durante a partida, os franceses tiveram que jogar com um a menos o resto do tempo.

Se a primeira etapa foi equilibrada, a segunda foi de Pelé. As esperanças francesas acabaram de vez aos 7min, quando o goleiro da seleção azul soltou a bola nos pés do camisa 10, após cruzamento de Didi: 3 a 1.

Pelé aproveita o rebote no terceiro gol: oportunismo que o consagrou dentro da área.

Depois, aos 19min, Garrincha fez sua tradicional ultrapassagem pelo flanco direito e cruzou na área. No bate-rebate, a bola sobrou para Pelé emendar para o fundo das redes: 4 a 1. Aos 30min, Pelé recebeu passe de Zagallo e bateu forte: era o terceiro gol dele e o quinto da Seleção Brasileira.

O time francês ainda descontou nos instantes finais em uma bela jogada individual de Piantoni, mas o jogo já estava perdido há muito tempo. O resultado final mostrava a superioridade verde-amarela.

Com 3 gols no jogo, Pelé fazia seu primeiro "hat-trick" na Seleção Brasileira.





















Enquanto a Seleção Brasileira comemorava a vitória de 5 a 2 e a passagem para a final da Copa, nas ruas de São Paulo o povo festejava de forma inusitada. Em frente ao Consulado Geral da França, centenas de torcedores gritavam “Simca dois!” em tom provocativo, referindo-se ao placar e à montadora recém-chegada.

Não demorou muito, a montadora “Simca Dois” voltou a ser apenas Simca, ganhou status e desenvolveu um modelo de muito sucesso na época: o Simca Chambord. Mas enquanto durou a gozação, os franceses nunca desejaram tanto que o Brasil tivesse ganhado aquela partida por mais de cinco gols — porque eles sabiam que era impossível aquele time vencer por menos.


24/6/1958 – Estocolmo – Semifinal – Brasil 5 x 2 França