terça-feira, 6 de maio de 2014

1982 | Voa, Canarinho

Para ler o texto anterior, "Guerra de Nervos", clique aqui.


Em 1982, poucos meses antes da Copa do Mundo, o cantor Leovegildo Lins Gama Júnior — ou apenas Júnior — lançou um disco que vendeu mais de 800 mil cópias. A música "Povo Feliz", mais conhecida como "Voa, Canarinho", virou o hit da Seleção Brasileira. Mas um detalhe chamou a atenção: o cantor era o lateral-esquerdo daquela equipe.

Capa do disco de Júnior, que, como jogador, era ambidestro, polivalente e tinha facilidade para jogar com as duas pernas, o que o permitiu atuar como volante, lateral-direito e esquerdo e meio-campista. Já como cantor, Júnior era um ótimo jogador.

Muito antes de seus jogadores se aventurarem na música, a seleção canarinho já estava mudada. A começar pela entidade que regia o futebol brasileiro. Em 1979, um decreto da FIFA estipulou que todas as federações nacionais de futebol deveriam tratar apenas do esporte jogado com os pés, o que não era o caso da Confederação Brasileira de Desportos (CBD). Em 24 de setembro daquele ano, nascia a Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

Na onda das mudanças, veio Telê. O primeiro grande desafio foi o Mundialito de 1981 — torneio comemorativo do cinquentenário da Copa do Mundo —, que reuniu os campeões mundiais até então, com exceção à Inglaterra, substituída pela Holanda. O Brasil foi derrotado na final pelo Uruguai — malditos 2 a 1 —, mas nada que abalasse o trabalho do treinador.

O futebol democrático do time de Telê foi um chamariz para o que estava por vir: as eleições diretas. Craques como Sócrates e Zico tinham opiniões bem definidas a respeito do regime político vigente no País.

Nas eliminatórias, quatro vitórias contra Bolívia e Venezuela. Classificada para a Copa, a Seleção Brasileira excursionou pela Europa e voltou como uma das favoritas ao título. Venceu a Inglaterra pela primeira vez em Wembley (1 a 0, com gol de Zico), passou pela França no Parc des Princes (3 a 1) e bateu a Alemanha Ocidental em Sttutgart (2 a 1, de virada). Nessa partida, Waldir Peres defendeu dois pênaltis cobrados por Paul Breitner, que, até aquele momento, nunca havia desperdiçado uma cobrança.

Porém, em 14 de junho do ano seguinte, na estreia da Copa, a sorte virou contra o goleiro brasileiro. A Seleção jogava melhor em Sevilha até os 34min, quando o soviético Andrei Bal arriscou do meio da rua e Waldir Peres não segurou. O Brasil sentiu o golpe. O time que só havia perdido duas vezes em quase dois anos de preparação — uma das derrotas justamente para a União Soviética, no Maracanã — terminou o primeiro tempo perdendo.

O empate só saiu aos 30min do segundo tempo, num lance brilhante de Sócrates: ele cortou dois marcadores e chutou forte no ângulo de Dasaev. A virada veio em tom dramático, a dois minutos do fim. O passe de Paulo Isidoro era para Falcão, mas o meia deixou a bola passar entre as pernas depois do grito de "deixa!" de Éder. O ponta dominou no quique da bola e, sem deixá-la cair, soltou a bomba no pé esquerdo — o chute de Éder chegou a ser comparado ao míssil Exocet, usado na Guerra das Malvinas. Dasaev nem se mexeu. O Brasil estreava com sufoco e com vitória.

"Só vi a bola quando estava passando do meu lado", revelou o goleiro Dasaev, sobre o chute de Éder — um dos mais fortes que já vira. Detalhe que os travessões do Estádio Sanchez Pizjuan, em Sevilha, estavam 2,5 cm abaixo dos 2,44 m exigidos pela regra.

Na segunda partida pelo Grupo 6, outro susto para o Brasil. A Escócia abriu o placar aos 18min da etapa inicial, num belo chute de Narey. O atacante estava substituindo o titular Alan Brazil, que, curiosamente, só não participou do confronto contra a Seleção Brasileira. Mas, diferentemente da estreia, a equipe reagiu rápido. Zico, aos 33min, cobrou falta com perfeição e igualou o placar. No segundo tempo, o Brasil deslanchou. Oscar, de cabeça, fez o segundo aos 5min. Éder, num toque genial por cobertura — quando o mundo esperava outro Exocet —, marcou o terceiro aos 18min. Falcão, de fora da área, fez o quarto aos 43min. Fim de jogo: Brasil 4 a 1.

O adversário na terceira rodada era estreante em Copas. Havia se classificado para o Mundial com uma goleada de 13 a 0 contra o maior rival: as Ilhas Fiji. Já classificada para a fase seguinte, a Seleção Brasileira não tomou conhecimento da Nova Zelândia. Zico foi às redes duas vezes: aos 28min num belíssimo voleio e aos 31min num toque de classe, tirando do goleiro van Hattum. No segundo tempo, Falcão e Serginho — que, enfim, desencantava — fecharam a goleada por 4 a 0, aos 19 e 35min, respectivamente.

Falcão comemora o terceiro gol contra os neozelandeses. O Rei de Roma foi o primeiro "estrangeiro" convocado para a Seleção Brasileira em uma Copa, ao lado de Dirceu, do Atlético de Madrid. Isso porque os jogadores de 34 que atuavam fora do País foram inscritos como atletas da CBD.

Com o inchaço do Mundial, a FIFA mudou mais uma vez o regulamento da segunda fase. Em 82, as doze seleções classificadas na primeira fase foram dividas em quatro grupos, com três países em cada um deles. Somente o campeão do grupo avançava às semifinais. Enquanto algumas chaves eram verdadeiras pedreiras, com  equipes tradicionais, outras eram compostas só por seleções sem peso na camisa. 

No Grupo A, a Polônia precisou dos critérios de desempate para superar a União Soviética — a vitória por 3 a 0 diante da Bélgica fez a diferença. A Espanha sucumbiu no Grupo B, formado por Inglaterra e Alemanha Ocidental. Os alemães ficaram com a vaga ao vencerem os donos da casa por 2 a 1. Por sua vez, a França pegou duas molezas no Grupo D: venceu a Áustria por 1 a 0 e despachou a Irlanda do Norte por 4 a 1. Já o Grupo C era o "grupo da morte", com três campeões do mundo: Argentina, Brasil e Itália.

Lance de Alemanha Ocidental 2 x 1 Espanha, em Madrid. A Espanha só venceu uma de suas seis partidas na Copa que disputou em casa. A "Fúria" ficaria com o estigma de 'decepção da Copa' por quase três décadas.

Maradona estava em casa — na verdade, na casa do vizinho. O Estádio Sarrià pertencia ao Reial Club Deportiu Espanyol de Barcelona, rival do poderoso Futbol Club Barcelona, que havia contratado 'Dieguito' a peso de ouro para por fim à carência de títulos do clube. Sede dos jogos do Grupo C na segunda fase, o Sarrià já vira a vitória italiana contra os hermanos por 2 a 1 na rodada inaugural. Para a Argentina, o segundo jogo era de vida ou morte. Para o Brasil, era a revanche de 78.

Indiscutivelmente, foi a melhor partida da Seleção Brasileira na Copa. Enquanto a Argentina apelava para a violência, o Brasil devolvia cada pontapé com um toque de classe. O resultado não poderia ser outro: muitas faltas. Numa delas, aos 11min, os argentinos provaram do próprio veneno. Éder disparou seu 'Exocet' na perna esquerda, a bola explodiu na trave depois do leve desvio de Fillol e caiu sobre a linha. Serginho e Zico chegaram juntos, mas foi o Galinho quem mandou a redonda para o fundo do gol.

Zico comemora o primeiro gol brasileiro no Sarrià. O Brasil, única equipe 100% na competição, ficou nove dias sem jogar, entre o fim da primeira fase e o início da segunda. Mesmo assim, não perdeu o pique. A cada dia, a Seleção se tornava mais favorita ao título.

O Brasil continuou melhor na segunda etapa. Aos 21min, Falcão recebeu livre na grande área, olhou para o segundo pau e cruzou na cabeça de Serginho: 2 a 0. A seleção verde-amarelo não parou por aí: aos 30min, numa belíssima enfiada de Zico, Júnior chutou na saída de Fillol e fez o terceiro. E como todo bom sambista que se preze, foi dançar na bandeirinha de escanteio.

Jogadores comemoram com Júnior o terceiro gol sobre a Argentina. A trilha sonora brasileira fez sucesso na Espanha. No lado A, o futebol-arte. No lado B, a tragédia.

Com o Brasil passeando em campo, a Argentina não encontrou alternativa senão bater. A deslealdade de Passarella tirou Zico de campo, enquanto Maradona foi expulso ao atingir Batista na altura da barriga. O adeus melancólico de Maradona, futuro astro da cidade, e seus comparsas contrastava com a euforia de uma equipe esbelta na ginga, no passe e nos gols. A equipe alviceleste chegou a diminuir aos 44min, com Ramón Díaz, mas ninguém comemorou. A seleção que virou sinônimo de futebol-arte estava voando baixo e mirando longe.

Até que Paolo Rossi interceptou o voo.

Maradona é expulso. Após a desclassificação, o "Pibe" rebateu as críticas de Pelé sobre sua atuação no jogo contra o Brasil. "Quero muito bem ao Pelé, mas ele é um tagarela, que tem de falar de mim para sair nas revistas".


Voa, canarinho, voa
Mostra pra esse povo que és um rei
Voa, canarinho, voa
Mostra na Espanha o que eu já sei




2 de julho de 1982 – Barcelona – Brasil 3 x 1 Argentina — Melhores Momentos
Narração de Luciano do Valle (homenagem póstuma)




Nenhum comentário:

Postar um comentário