terça-feira, 13 de maio de 2014

1986 | Diga Não à FIFA


Para ler o texto anterior, "O Casamento de Battiston", clique aqui.


"Nas últimas semanas, gastei muito tempo tentando convencer meus amigos que não tinha a menor chance de ser premiado". A modéstia de Gabriel Garcia Márquez era tão notável quanto sua obra literária. A opinião do escritor, entretanto, divergia da Academia Sueca, instituição responsável por atribuir o Nobel da Literatura desde 1901. "Por seus romances e contos onde o fantástico e o real se fundem na complexa riqueza de um universo poético que reflete a vida e os conflitos de um continente”, Márquez foi agraciado com o prêmio, em 21 de outubro de 1982. Quatro dias depois, a Copa do Mundo de 1986 seguiu o rumo de García Márquez: deixou a Colômbia e foi para o México.

A intensa crise econômica, com inflação alta e preços congelados — situação semelhante seria vivida poucos anos depois pelo vizinho a leste —, levaram a Colômbia a dizer “não” à FIFA. Na noite de 25 de outubro de 1982, o presidente colombiano Belisario Betancur foi à televisão para um brevíssimo discurso, no qual declarou que “não se cumpriu a regra de ouro, segundo a qual o Mundial deveria servir à Colômbia e não a Colômbia servir à multinacional do Mundial. Aqui temos outras coisas a fazer, e não há sequer tempo para atender às extravagâncias da FIFA e seus sócios”. Faltavam quatro anos para a competição.


Gabriel García Márquez recebe, em Estocolmo, o Prêmio Nobel de Literatura de 1982. Na opinião do presidente colombiano, o reconhecimento de 'Gabo' também serviria para redimir o país perante o mundo.

Com o “não” colombiano, a FIFA de Havelange — que não recebeu bem as críticas e repreendeu o presidente — foi obrigada a buscar uma nova sede: encontrou o México de braços abertos. O sucesso do Mundial de 70 ainda estava na memória da entidade, que prontamente decidiu pelos mexicanos no ano seguinte. Porém, a realização do torneio foi novamente ameaçada; desta vez pela Mãe Natureza. Um terremoto de magnitude 8.1 na escala Richter devastou a Cidade do México em 19 de setembro de 1985. Com força e trabalho, o país se reergueu. No dia 31 de maio de 1986, a capital mexicana viu pela segunda vez uma abertura de Copa do Mundo. E valeu a escrita do empate — com Paolo Rossi no banco, a então campeã Itália ficou no 1 a 1 com a Bulgária.

População corre no momento do tremor, que em 50 segundos entrou para a história como o mais violento da região. Mas os mexicanos mostraram coragem para reconstruir o país.

Depois de outro empate por 1 a 1, contra a Argentina, a Azzurra passou apertada pela Coreia do Sul (3 a 2), mesmo com um show de Altobelli, que fez dois gols e ainda perdeu um pênalti — ambas as partidas aconteceram em Puebla. Aos trancos e barrancos, a Itália alcançou a segunda fase, que novamente havia mudado: além dos dois primeiros colocados, os quatro melhores terceiros dos seis grupos também garantiam vaga nas oitavas-de-final. Foi dessa forma que Bulgária no Grupo A, Bélgica no Grupo B, Uruguai no Grupo E e Polônia no Grupo F se classificaram.

No Grupo B, o México finalmente estreou com vitória em uma Copa do Mundo, ao vencer a Bélgica por 2 a 1 no Azteca. Os belgas haviam se inspirado nos ingleses que, em 70, levaram a própria água, temendo o chamado 'Mal de Montezuma' (ver "1970 | A Maldição de Montezuma"). No entanto, o cardápio era mais farto: 20 mil litros de água mineral e centenas de quilos de queijo holandês. A derrota belga foi encarada pelos anfitriões como um castigo do antigo imperador, o que o destino mostrou mais tarde ser apenas um tropeço — a Bélgica chegaria às semifinais.


Hugo Sánchez comemora o segundo gol mexicano contra a Bélgica. O craque do Real Madrid e grande astro da seleção da casa só marcou um gol na Copa.

Jogando sempre no Azteca, os donos da casa se classificaram para as oitavas. O empate por 1 a 1 com o Paraguai teve sabor amargo pelo pênalti desperdiçado por Hugo Sánchez, mas uma vitória simples diante do Iraque garantiu o México na primeira colocação do grupo. O responsável pela façanha era Bora Milutinović, que seria o técnico recordista de participações em Mundiais — cinco. Além do México em 86, o sérvio dirigiu a Costa Rica em 90, os Estados Unidos em 94, a Nigéria em 98 e a China em 2002.

As peculiaridades do Grupo C começaram logo na estreia da França, em León.  Uma galinha foi arremessada na pequena área do Canadá, obrigando o bandeirinha costarriquenho Berny Morera a sair de sua posição para retirar o animal. O técnico francês Henri Michel declarou, antes da partida, que só temeria os canadenses se fosse um torneio de hóquei no gelo. De fato, os Azuis dominaram as ações, mas sofreram para vencer. Papin perdeu pelo menos quatro chances claras até, a dez minutos do fim, fazer o gol da vitória.

Na luta pela segunda posição, Paraguai e Bélgica empataram por 2 a 2, em Toluca, pelo Grupo B. Mas o que ficou marcado na partida não foram os belos gols, e sim a expulsão do treinador paraguaio Cayetano Ré, o primeiro a ser excluído em um jogo de Copa.

A União Soviética contava em seu elenco com onze jogadores do Dínamo de Kiev, time da cidade vizinha a Pripyat, onde, menos de dois meses antes, acontecera o acidente nuclear de Chernobyl. Apesar da nuvem radioativa ter atingido Kiev, os atletas do Dínamo não sofreram nenhum mal. Muito pelo contrário: pareciam ter superpoderes na partida de estreia diante da Hungria. Na goleada por 6 a 0, em Irapuato, quatro gols foram marcados por jogadores do clube — Yakovenko, Belanov e Yaremchuk, duas vezes.

No dia seguinte à derrota, o time húngaro foi obrigado pelo técnico György Mezey a assistir o VT da partida. “Tomar seis gols num jogo só já é duro. Pior foi ter que ver tudo novamente. Foi a experiência mais dolorosa da minha vida rever os gols que sofri”, disse o goleiro Péter Disztl. O ‘sacode’ pareceu acordar a equipe, que na segunda rodada fez 2 a 0 em cima do Canadá. Mas outra goleada, desta vez por 3 a 0, para a França, eliminou os magiares de sua última participação em Copas. Na chave, só União Soviética e França avançaram.

Pripyat, vizinha à usina de Chernobyl, hoje é uma cidade fantasma. O acidente nuclear de 26 de abril de 1986 matou 56 pessoas e contaminou outras milhares em todo o leste europeu. Os cerca de 50 mil habitantes de Pripyat tiveram de evacuar completamente a cidade após o acidente. 

O Grupo E, com Alemanha Ocidental, Dinamarca e Uruguai era considerado o “grupo da morte” não só pela presença dessas três seleções, mas  também pelo incidente que assombrou a Escócia, o quarto componente do grupo, ainda nas eliminatórias. O técnico Jock Stein sofrera um infarto ao final da partida, em Cardiff, contra os galeses, que classificou os escoceses para a repescagem do Mundial. Sob o comando do auxiliar técnico Alex Ferguson, o time bretão ficou em último lugar, com apenas um ponto em três jogos.

A grande sensação do grupo — e da Copa — foi a Dinamarca, que muitos passaram a chamar de “Dinamáquina” após as três vitórias sobre Escócia (1 a 0, em Nezahualcoyotl), Uruguai (6 a 1, em Nezahualcoyotl) e Alemanha Ocidental (2 a 0, em Querétaro). Estreantes em Mundiais, os comandados de Sep Piontek inovaram no campo e no uniforme. A camisa com uma metade vertical vermelha e a outra metade branca com pequenas linhas vermelhas não foi a única coisa que atordoou os adversários: o sistema 3-5-2, com um líbero na defesa e alas no lugar de laterais, foi mortal. Não houve como evitar a avassaladora primeira colocação da seleção dinamarquesa.

Dos nove gols dinamarqueses na primeira fase, Elkjær Larsen marcou quatro — três somente contra os uruguaios. A velocidade do atacante era espantosa para alguém que fumava 30 cigarros por dia.

As surpresas não pararam por aí. No Grupo F, a zebra marroquina passeou em Guadalajara e se transformou na primeira nação africana a passar da fase de grupos. Depois de dois empates por 0 a 0 em Monterrey, contra Polônia e Inglaterra, o Marrocos, do técnico brasileiro José Faria, não tomou conhecimento de Portugal e venceu por 3 a 1, com dois gols de Khairi.

A seleção portuguesa viveu no México dias de instabilidade. Antes da derrota para o Marrocos, problemas com premiação e indisciplina levaram a uma greve nos treinos. A “greve de Saltillo” resultou na desistência de muitos jogadores, após a Copa, em defender novamente a seleção portuguesa.

Lineker marcou os três gols da Inglaterra contra a Polônia, em Monterrey. Depois de perder para Portugal (1 a 0) e empatar com Marrocos (0 a 0), o English Team se recuperou e garantiu a segunda posição do Grupo F.

Argentina, no Grupo A, e Brasil, no Grupo D, eram, sem dúvida, os grandes favoritos. Do lado argentino, Diego Maradona chegara no auge de sua forma física, e queria apagar a má impressão deixada na Copa da Espanha, em 82. Do lado brasileiro, o técnico Telê Santana precisava provar sua competência, depois de levar o "futebol-arte", no último Mundial, a uma frustrante quinta posição. Mas só havia espaço para um deles ser campeão. Para quem a Copa do Mundo diria "não", mais uma vez?