sexta-feira, 17 de julho de 2015

À Espera do Carrasco



Os portões foram abertos pontualmente ao pôr do sol. A multidão que se aglomerou do lado de fora logo entrou; em fila, em festa. O carnaval improvisado, pouco comum acima das nuvens, reuniu anjos, santos, gênios e outros seres celestiais, em tamanha ansiedade que mais pareciam seres terrestres. A notícia da chegada do último remanescente do Maracanazo se espalhara pelos sete céus: Alcides Ghiggia estava a caminho do Maracanã celestial.

No vestiário, a voz de Obdulio Varela ecoava em uma preleção emocionada antes da partida decisiva. Dono de uma personalidade forte e uma liderança nata, o capitão uruguaio tentava, em vão, camuflar o nervosismo. Ao seu lado, Juan Schiaffino era outro que não escondia a emoção. Apesar de agora pertencer ao plano espiritual, a lembrança do cruzamento de Ghiggia no primeiro gol uruguaio continuava viva e presente.

De repente, a porta de madeira rangeu. Por um breve momento, Obdulio suou frio. Mas quem adentrou o vestiário foi Barbosa. O goleiro brasileiro não via a hora de reencontrar o seu algoz, que tão gentilmente o livrou da culpa pelo gol do triunfo celeste: "Ganham os 11, perdem os 11", rebateu certa vez o uruguaio. Em vida, Barbosa dizia repetidamente que "a pena máxima no Brasil é de 30 anos, e já estou pagando há quase 50". Agora, num terreno atemporal, não havia mais lágrimas, dores e nem sofrimento.

Aos poucos os jogadores da Seleção Brasileira foram chegando e se unindo aos uruguaios: Bauer, Ademir, Augusto, Friaça, Juvenal, Danilo Alvim, Bigode, Jair, Chico e, por último, Zizinho, que ao ver aqueles 20 jogadores reunidos em harmonia pensou estar sonhando. Lembrou-se imediatamente da concentração brasileira em São Januário 56 anos atrás, quando a politicagem invadiu a privacidade do time, tirou-lhes a tranquilidade e injetou nos jogadores o princípio ativo da tragédia. Naquele dia, Mestre Ziza teve a convicção que estavam partindo para uma guerra. Hoje, para a eternidade. Juntos.

A porta de madeira rangeu mais uma vez — pela última vez. Ghiggia apareceu, e para espanto geral já não era mais aquele homenzinho franzino, do bigodinho magrelo, que numa tarde ensolarada roubou o brilho do gigante pela própria natureza. Ali, parado na entrada do vestiário, estava um senhor de outrora 88 anos, apoiado em sua fiel escudeira, a bengala. O olhar de Ghiggia percorreu cada uma das 21 almas que por tanto tempo esperaram por ele. Viu em Obdulio a força de seu capitão. Em Schiaffino, a cumplicidade. Em Zizinho, o talento. Em Barbosa, a redenção. Então, teve certeza de que acabara de chegar em casa. E sorriu.


Ghiggia recebeu homenagem no empate por 0 a 0 entre Uruguai e Jordânia, que garantiu a Celeste na Copa de 2014. Reprisado em um grande telão, o gol foi comemorado pela torcida como se tivesse sido feito ao vivo.







O gol que silenciou o Maracanã, a 11 minutos do fim, imputou a maior tragédia da história do futebol brasileiro. Até que veio a Copa de 2014 e... gol da Alemanha.