Os
portões foram abertos pontualmente ao pôr do sol. A multidão que se aglomerou do
lado de fora logo entrou; em fila, em festa. O carnaval improvisado, pouco
comum acima das nuvens, reuniu anjos, santos, gênios e outros seres celestiais,
em tamanha ansiedade que mais pareciam seres terrestres. A notícia da chegada do
último remanescente do Maracanazo se espalhara pelos sete céus: Alcides Ghiggia
estava a caminho do Maracanã celestial.
No
vestiário, a voz de Obdulio Varela ecoava em uma preleção emocionada antes da partida decisiva. Dono de
uma personalidade forte e uma liderança nata, o capitão uruguaio tentava, em vão,
camuflar o nervosismo. Ao seu lado, Juan Schiaffino era outro que não escondia
a emoção. Apesar de agora pertencer ao plano espiritual, a lembrança do cruzamento de
Ghiggia no primeiro gol uruguaio continuava viva e presente.
De
repente, a porta de madeira rangeu. Por um breve momento, Obdulio suou frio.
Mas quem adentrou o vestiário foi Barbosa. O goleiro brasileiro não via a hora
de reencontrar o seu algoz, que tão gentilmente o livrou da culpa pelo gol do
triunfo celeste: "Ganham os 11, perdem os 11", rebateu certa vez o
uruguaio. Em vida, Barbosa dizia repetidamente que "a pena máxima no
Brasil é de 30 anos, e já estou pagando há quase 50". Agora, num terreno
atemporal, não havia mais lágrimas, dores e nem sofrimento.
Aos
poucos os jogadores da Seleção Brasileira foram chegando e se unindo aos
uruguaios: Bauer, Ademir, Augusto, Friaça, Juvenal, Danilo Alvim, Bigode, Jair,
Chico e, por último, Zizinho, que ao ver aqueles 20 jogadores reunidos em harmonia pensou
estar sonhando. Lembrou-se imediatamente da concentração brasileira em São Januário 56 anos
atrás, quando a politicagem invadiu a privacidade do time, tirou-lhes a
tranquilidade e injetou nos jogadores o princípio ativo da tragédia. Naquele dia,
Mestre Ziza teve a convicção que estavam partindo para uma guerra. Hoje, para a
eternidade. Juntos.
A
porta de madeira rangeu mais uma vez — pela última vez. Ghiggia apareceu, e para
espanto geral já não era mais aquele homenzinho franzino, do bigodinho magrelo,
que numa tarde ensolarada roubou o brilho do gigante pela própria natureza. Ali,
parado na entrada do vestiário, estava um senhor de outrora 88 anos, apoiado em
sua fiel escudeira, a bengala. O olhar de Ghiggia percorreu cada uma das 21 almas
que por tanto tempo esperaram por ele. Viu em Obdulio a força de seu capitão.
Em Schiaffino, a cumplicidade. Em Zizinho, o talento. Em Barbosa, a redenção. Então,
teve certeza de que acabara de chegar em casa. E sorriu.
O gol que silenciou o Maracanã, a 11 minutos do fim, imputou a maior tragédia da história do futebol brasileiro. Até que veio a Copa de 2014 e... gol da Alemanha.
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