quinta-feira, 15 de maio de 2014

1986 | Gols da Democracia


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“Se todos quisermos, dizia-nos há quase 200 anos, Tiradentes, aquele herói enlouquecido de esperança, poderemos fazer deste país uma grande nação. Vamos fazê-la.” Perante o Congresso Nacional, Tancredo Neves discursava pela primeira vez como presidente eleito, em 15 de janeiro de 1985. Depois de duas décadas de ditadura, o Brasil, enfim, respirava o ar da liberdade. Porém, às vésperas de assumir o poder, Tancredo foi internado com fortes dores abdominais. Faleceu em 21 de abril, na mesma data da morte de Tiradentes. Uma grande ironia do destino para a torcida brasileira, que perdia o seu mártir da democracia.

Movimento Diretas Já, na Praça da Sé, no dia 25/01/1984 — data do 430° aniversário de São Paulo. Com a PEC rejeitada, os adeptos ao movimento tiveram de se contentar com uma vitória parcial: a eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral, em 85.

O vice, José Sarney, deu continuidade ao governo, e se tornou de fato o primeiro presidente civil após o regime militar. Em fevereiro de 1986, Sarney instituiu o “Plano Cruzado”, buscando conter o temido dragão da inflação. Sob nova moeda, o cruzado, o governo congelou preços, salários e acabou com a correção monetária. Em um primeiro momento, as medidas geraram um clima de euforia entre a população, que ainda tinha mais um motivo para sorrir: Zico estava de volta ao futebol.

No Fla-Flu de 16 de fevereiro de 1986, Zico, após seis meses em intensa recuperação, marcou três dos quatro gols flamenguistas — um, claro, de falta — na goleada por 4 a 1 sobre o maior rival, o Fluminense. Era a estreia de Sócrates no rubro-negro, mas todos os louros foram para o camisa 10 da Gávea. Entretanto, no decorrer da temporada, as fortes dores no joelho esquerdo fizeram Zico entrar novamente em tratamento. Sem condições físicas ideais, Telê Santana esperou por Zico até o último instante. E o convocou — contra sua própria vontade, como confessou anos depois.

Zico sai carregado após a entrada de Márcio Nunes, do Bangu, que destruiu o seu joelho, em 29/08/1985. Um ano depois, o agressor pediu desculpas, que foram aceitas pelo Galinho. O gesto nobre, porém, não apagou a marca da violência e suas consequências.

Se Zico estava nos planos do técnico, Renato Gaúcho não estava. Cortado por indisciplina, o atacante ganhou a solidariedade de Leandro, que pediu dispensa. O que parecia um problema para Telê virou solução. O discreto Josimar, do Botafogo, foi convocado como reserva do novo titular, Édson. E, quando teve oportunidade, surpreendeu.

A Seleção Brasileira, cabeça-de-chave do Grupo D, estreou no dia 1° de julho, num estádio que conhecia bem: o Jalisco, em Guadalajara, onde venceu cinco das seis partidas na Copa de 70. Pela quinta vez em Mundiais o Brasil encarava a Espanha. Durante a execução dos hinos, a banda do estádio tocou o Hino à Bandeira em vez do Hino Nacional — um pequeno aperitivo das polêmicas que viriam a seguir.

Depois de um primeiro tempo sem gols, os espanhóis chegaram a fazer 1 a 0 na segunda etapa. O chute de Michel carimbou o travessão e caiu dentro do gol, mas a arbitragem de Christopher Bambridge mandou o jogo seguir. Melhor para o Brasil que, não tendo nada a ver com o erro, abriu o placar aos 17min. O tiro de Careca também acertou o travessão, só que, desta vez, a bola voltou para o centro da área e encontrou Sócrates — o doutor cabeceou para o gol vazio. A estreia com vitória contra o adversário mais difícil do grupo deu confiança à equipe.

O goleiro espanhol Zubizarreta acompanha o lance do gol brasileiro. Os espanhóis reclamaram de impedimento, mas o árbitro australiano novamente agiu a favor do Brasil.

Na segunda partida, diante da Argélia, a Seleção continuou a mostrar um futebol burocrático, com Alemão e Elzo no meio de campo — e Cerezo e Falcão na saudade. O único gol do confronto saiu de uma jogada de Müller na direita, aos 21min do segundo tempo. Careca aproveitou a sonolência da defesa argelina e botou a bola no fundo das redes. Depois da partida, um episódio ocupou as manchetes dos jornais e afetou o clima da equipe. Édson, Alemão e Casagrande foram flagrados bebendo cerveja num circo. Telê — que não era palhaço — tirou Casagrande e Édson do time titular, e promoveu as entradas de Müller e Josimar, respectivamente. O lateral do Botafogo entrou para não mais sair.

A fragilidade da Irlanda do Norte, na terceira rodada, propiciou ao Brasil fazer sua melhor partida na fase de grupos. Careca marcou duas vezes (uma aos 15min do primeiro e outra aos 42min do segundo tempo), mas o gol do jogo foi do estreante Josimar: um torpedo de fora da área, aos 42min da etapa inicial, no ângulo do goleiro Jennings. Classificada em primeiro lugar, sem levar nenhum gol, a Seleção Brasileira entrava com moral na segunda fase.

Antes do Zidane de 98, o Brasil enfrentou outro Zidane, em 86. Na vitória brasileira sobre a Argélia por 1 a 0, gol de Careca (acima, comemorando o seu primeiro na Copa), o meia argelino Djamel Zidane entrou no segundo tempo e jogou apenas 10 minutos.

No calor do meio-dia, o anfitrião México abriu a recém-criada fase de oitavas-de-final. Com o apoio maciço de 114 mil vozes, os donos da casa despacharam a Bulgária por 2 a 0. Mais tarde, União Soviética e Bélgica fizeram uma partida espetacular de sete gols. Depois do 2 a 2 no tempo normal, os belgas viraram o placar na prorrogação e venceram por 4 a 3. Belanov anotou os três gols soviéticos, enquanto os belgas foram mais solidários:  Scifo, Ceulemans, Demol e Claesen marcaram.

Manuel Negrete, do México, executa uma meia-bicicleta no primeiro gol de sua seleção contra os búlgaros, aos 34min. A bola — a primeira com material sintético em Mundiais — caiu no cantinho esquerdo do goleiro Mihaylov. Servin, de cabeça, marcou o segundo.

Chegara a vez do Brasil, contra uma Polônia que não era nem sombra do time de Lato, na década de 70. Sócrates, aos 30min de jogo, fez o primeiro, cobrando pênalti. O segundo só veio no segundo tempo; e foi de Josimar, a sensação brasileira na Copa. Se já não bastasse o golaço contra os irlandeses, o gol do lateral contra os poloneses foi uma verdadeira pintura. O camisa 13 entrou na área costurando a defesa adversária e, quase sem ângulo, chutou violentamente no canto alto do goleiro Mlynarczyk.

Aos 34min, Edinho deixou o seu, em mais uma bela jogada: num único drible, o jogador tirou o goleiro e o zagueiro polonês do lance e chutou para o gol vazio. Quatro minutos depois, Zico, que havia entrado no lugar de Sócrates, sofreu pênalti. Antes da cobrança, formou-se uma convenção para definir o batedor. Careca deu a bola para Zico, mas o Galinho se absteve, convencendo o centroavante a cobrar e aumentar seus números na artilharia. Careca consentiu, bateu e fez. Seguindo os passos da política, a Seleção era democrática.

A vitória por 4 a 0 manteve o Brasil em Guadalajara para o duelo das quartas de final contra a França. Em seis encontros até então, entre amistosos e Copa do Mundo,  a seleção canarinho havia ganho quatro e perdido apenas um. Mas nem foi preciso perder a partida para o Brasil sair derrotado.

Josimar comemora, contra a Polônia, seu segundo gol na Copa — ambos golaços. A Seleção Brasileira era, dentre as oito equipes restantes, a de melhor campanha no Mundial, com 100% de aproveitamento, nove gols marcados e nenhum sofrido.