segunda-feira, 2 de junho de 2014

1994 | Os Desbocados e o Cala-Bocas


Para ler o texto anterior, "1994 | Dia da Dependência", clique aqui.


Os búlgaros sempre foram diferentes. A começar pela maneira peculiar de dizer "sim" e "não" com a cabeça: eles negam para afirmar e afirmam para negar. Apesar da excentricidade, a Bulgária tem muito que ensinar a seus vizinhos de Balcãs. No fim dos anos 80 e início dos anos 90, o país foi o único da região a fazer a sua transição política de forma pacífica, sem guerras e, consequentemente, vítimas humanas — em contraste com a ex-Iugoslávia, por exemplo. Surpreendente, diriam alguns cientistas políticos, mas não tanto quanto o desempenho da seleção búlgara na Copa de 94.

O início foi desastroso: derrota de 3 a 0 para a Nigéria, com a culpa colocada no calor de Dallas. Na partida seguinte, a goleada por 4 a 0 sobre a Grécia trouxe de volta o time que brilhantemente eliminou a França nas eliminatórias, em plena Paris. Melhor do que conseguir a primeira vitória em Mundiais — em 16 partidas disputadas — foi obter logo duas em seguida: o triunfo contra a Argentina, por 2 a 0, deu à Bulgária a primeira colocação do Grupo D. Graças a Stoitchkov.

Stoitchkov comemora contra a Argentina. Aos 19 anos, depois de uma briga generalizada na final da Copa da Bulgária, ele trocou socos com o goleiro adversário. Banido do futebol junto com outros vários atletas, ganhou anistia um ano depois.

O técnico Dimitar Penev tinha em mãos uma equipe sólida, com bons jogadores na defesa e no meio-campo, diferentemente do ataque, onde atuava um gênio. Hristo Stoitchkov, companheiro de Romário no Barcelona, era marrento, craque e matador como o Baixinho — o que rendia uma boa disputa de temperamentos explosivos na equipe catalã. Todas as fichas estavam depositadas no astro. O investimento continuou a dar retorno nas oitavas de final, diante do México — um replay do confronto de 1986.

Logo a 6min de partida, Stoitchkov foi lançado e partiu em velocidade até a entrada da área. "Segura que eu quero ver", dizia um narrador na televisão. Mas não tinha como segurá-lo. O arremate, violentíssimo, estufou as redes do espalhafatoso Jorge Campos. A vantagem não durou muito. Aos 18min, o brasileiro naturalizado mexicano Zaguinho foi derrubado na área. García-Aspe cobrou e deixou tudo igual em Nova Jersey. A igualdade permaneceu por mais quase uma hora de partida, contando toda a prorrogação. Nas cinco primeiras cobranças de pênalti, só o chute de Guentchev entrou, sendo que o México desperdiçou três. Desse jeito, nem foi preciso um quinto batedor: a Bulgária liquidou a fatura em 3 a 1 com a cobrança perfeita de Letchkov.

O mexicano Bernal se pendura na rede e desmonta o gol. Antes de ser trocado, Zaguinho amarrou a rede no microfone de captação de som ambiente, mostrando o jeitinho brasileiro de resolver problemas.

Facilmente reconhecido pela calvície, Letchkov foi o homem que tirou a Alemanha de uma semifinal de Copa pela primeira vez desde 1962 — considerando-se, em 1978, a segunda fase sendo a fase semifinal. Jogador do Hamburgo, Letchkov foi demitido após fazer o gol da vitória por 2 a 1 da Bulgária em cima da Alemanha, aos 33min do segundo tempo, nas quartas de final. Três minutos antes, Stoitchkov havia marcado, de falta, o seu quinto gol na competição. A geração de Letchkov, Stoitchkov e Kostadinov estava nas semifinais.

Matthäus, de pênalti, abre o placar em Nova Jersey. A seleção alemã voltou a mostrar as falhas defensivas contra a Bélgica (3 a 2, nas oitavas), que lhe custaram a classificação.

Na luta por um lugar ao sol, em Dallas, Brasil e Holanda não enfrentaram o mesmo calor que Suécia e Arábia Saudita nas oitavas de final (3 a 1 para os suecos). No entanto, a temperatura mais amena, na casa dos 27°, contrastou com o clima do jogo. A revanche da derrota brasileira em 1974 era o pano de fundo de uma disputa acirrada, com muita vontade e poucas oportunidades, que terminou sem gols no primeiro tempo. O melhor da festa estava guardado para a segunda etapa.

Aos 8min, Aldair lançou a bola do campo de defesa nos pés de Bebeto. O domínio foi perfeito; mas primoroso mesmo foi a conclusão de Romário, após o cruzamento: de peito de pé, trocando a passada e botando no fundo do gol holandês. Dez minutos depois, de Goey deu um 'chutão' para frente, Branco devolveu de cabeça e Bebeto, entre os zagueiros laranjas, partiu com a bola dominada. Ele se livrou do goleiro e empurrou para o gol vazio. O atacante brasileiro comemorou como se embalasse uma criança: era Matteus, seu filho que nascera dois dias antes. Brasil 2 a 0. Embalado pelo gol de Bebeto, o time acabou dormindo em campo.

Bebeto ganha a companhia de Mazinho e Romário na comemoração. Matteus, o "bebê imaginário", recebera o nome em homenagem ao craque alemão Lothar Matthäus, por quem Bebeto tinha muita admiração.

Um minuto depois, a Holanda diminuiu numa cobrança de lateral. Bergkamp recebeu na área, ganhou de Márcio Santos e fuzilou a meta de Taffarel. Sonolenta, a Seleção Brasileira permitiu a reação holandesa. Aos 30min, Overmars cobrou o escanteio e Winter cabeceou livre para empatar a partida. Havia nove jogadores brasileiros dentro da área —jogo empatado, 2 a 2. O fantasma de 74 rondou o gramado. Mas Branco, com o braço no rosto de Overmars, deu um discreto "chega pra lá" na assombração.

Branco seguiu no lance, foi derrubado por Jonk e, no chão, chutado por Koeman — o que gerou uma pequena confusão na entrada da área. Preterido por Parreira, Branco só virou titular com a expulsão de Leonardo contra os Estados Unidos. Recuperado de dores na coluna, a convocação do lateral do Fluminense havia sido muito contestada, já que Roberto Carlos, do Palmeiras, vivia fase bem melhor. O chute saiu cheio de curvas, passou na frente de Witschge, por trás de Romário, que ainda teve tempo de desviar, beijou o pé da trave e morreu no fundo do gol. Era o "gol cala-boca".  3 a 2, vingados — Seleção e Branco.

Branco bate a falta. Depois de eliminar a Irlanda nas oitavas (2 a 0), a Holanda caiu frente ao Brasil. A campanha irregular, com derrota para a Bélgica (0 a 1) e duas vitórias suadas, ambas por 2 a 1, contra Marrocos e Arábia Saudita, renderam muitas críticas ao time.

O Brasil estava de volta às semifinais. E a Suécia, de novo em seu caminho. A partida em Pasadena colocava em xeque a invencibilidade dos dois únicos invictos do torneio. A equipe canarinho entrou em campo pela terceira vez com seu uniforme reserva, fato inédito na história da Seleção em Mundiais. Abençoado pelo manto de Nossa Senhora — à época, 100% poliéster — o Brasil teve a melhor chance do primeiro tempo. Romário driblou o goleiro Ravelli e chutou. O zagueiro Patrick Andersson afastou mal e a bola sobrou para Mazinho, que, com o gol escancarado, isolou.

Segundo tempo: a Seleção teve mais posse de bola, mas nada do gol sair. A apreensão de um lado contrastava com o deboche do outro. Antes de uma cobrança de tiro de meta, o goleiro Ravelli saiu dançando para as câmeras. A desforra veio a dez minuto do apito final. Jorginho subiu ao ataque e cruzou na área sueco.  Romário, 1m69, subiu entre Bjørklund, 1m80, e Patrick Andersson, 1m85. Após vencer os gigantes e botar a bola no fundo do gol sueco, o Baixinho abriu os braços e caminhou tranquilamente, como quem dissesse: “Me aplaudam”.

24 anos depois, o Brasil estava numa final de Copa. Por ironia do destino, contra o mesmo adversário.

O Baixinho voa. “Fazendo gols, vou continuar surdo para o que ele fala de errado”, comentou o técnico Carlos Alberto Parreira, sobre as reclamações de Romário quanto ao esquema tático.